Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Minhas Vidas!

Praça Pedro Alves de Oliveira, no centro o monumento ao grande homem público, Dr. Valentim Gentil

Relembrando como eram as casas, as ruas, as praças, as igrejas, os locais de entretenimento, as escolas, os meios de transporte, os vestuários, as casas comerciais, as oficinas, as alfaiatarias, os salões de barbeiro, os institutos de beleza, o jeitão das pessoas, o comportamento dos governantes e dos políticos, a vida das mulheres, dos idosos, dos jovens daqueles tempos, sinto hoje que eu já tive pelo menos três vidas nesta vida. Na primeira, esta que é tema central de minhas crônicas semanais, vivi numa cidade cujas ruas, praças, construções quase que desapareceram todas. As ruas receberam o torcret e o asfalto, tiveram o leito carroçável ampliado, as calçadas estreitadas. As praças  que eram duas na época, hoje são várias; a principal delas, a Pedro Alves de Oliveira, que naquele tempo a gente chamava de “o jardim”, teve sua área diminuída para dar lugar às faixas oblíquas de estacionamento, na época já tinham trocado o coreto pelo monumento a Valentim Gentil, agora apresenta o monumento deslocado e o traçado bem alterado. A Praça Cônego Borges, à frente da Matriz, não é mais chamada de “largo da Matriz”, área que viveu anos no abandono, sem mesmo o plantio de canteiros que exibissem flores que lhe dariam um colorido; no lugar das rejeitadas flores ganhou um prédio que abriga o Forum. Criou-se a Praça Roberto Del Guércio, onde antes se instalavam os circos e os parques de diversão itinerantes, depois de ter sido a praça

Praça da Matriz, depois Praça Cônego Borges, que depois de algum tempo abandonada, foi construído o Fórum no local

frontal da Estação da Estrada de Ferro Douradense, infelizmente extirpada da vida de nossa cidade. A Praça da Estação ou o Largo, como era também chamada a área, ficava mesclada de carros de praça, alguns raros automóveis particulares, troles, semi-troles e muita gente circulando antes da partida do trem, às 8,31h de cada manhã e durante a espera da volta do trem que parava na plataforma às exatas 18,36h.  Ir à Estação nestes horários era um ato social, um entretenimento habituais.

As casas eram, na maioria, construídas à linha da calçada, sem recuos; no meu tempo de criança as portas e janelas, tanto das residências como das lojas, eram feitas em madeira maciça, fechadas por dentro por trincos e trancas transversais de ferro ou aço. Não havia ainda as venezianas, que vi aparecerem nos primórdios dos anos 40. Predominava o estilo romano de portas e janelas, encimadas pelo arco feito no compasso. Algumas casas eram recuadas e ostentavam belos jardins. O carro, sempre chamado de automóvel, quando existia, era guardado em garagens construídas na lateral, de preferência nos fundos da casa. Embora admirados, os veículos motorizados não exerciam a tirania que exercem hoje sobre as pessoas, que atualmente são capazes de deixar a boa alimentação, os cuidados com a saúde e o conforto da moradia em troca do “carro”, o “queridinho”.  As casas das famílias sabidamente ricas ocupavam o espaço suficiente para as necessidades de uma família, embora sobrassem vastos terrenos, que constituíam os quintais, quintais que abrigavam fornos à lenha, o

 

poço, a tina e a “vasca”, como se chamava o tanque de lavar roupa, o coradouro ou quarador, como chamávamos o lugar onde se estendiam as roupas para corar, os extensos varais, e os pomares, ao fundo dos quais se instalavam as “casinhas”, as privadas ou latrinas, anteriores à chegada da água encanada e do esgoto.

Praça Roberto Del Guércio, no local se instalavam circos e parques de diversão itinerantes

Nesta minha  primeira vida fazia-se quase tudo em casa: as roupas eram lavadas e passadas ali, poucos contratavam o serviço de lavadeiras, o pão nosso de cada dia era feito ali, o sabão de soda e o de cinza também eram feitos ali, as massas da “macarronada da mamma”, infalível no almoço de domingo, também se fazia em casa e era comum verem-se as tiras de espaguete ou de talharim secando ao sol da tarde, penduradas em paus de vassoura apoiados em duas cadeiras. Dizia-se “macarrão da mamma” ou “maccherone della mamma” porque era hábito das famílias se reunirem na casa do Nono e da Nona para o almoço de domingo. Não havia casa que não tivesse sua máquina de costura, porque para os alfaiates e as costureiras de então, iam apenas as roupas a serem usadas em eventos especiais, como casamentos, posses de cargos públicos, bodas de prata ou de ouro, daí por diante.

Nestes anos de minha infância ainda não havia a campainha nas casas, o visitante, o entregador, o cobrador batia palmas até que alguém viesse atendê-los. Os mais íntimos iam entrando e se anunciando em voz alta “ô de casa!” ou então “tem gente aí?”  ao que o de dentro respondia “ ô de fora, pode ir entrando!”. Porque as portas passavam o dia encostadas, às vezes até abertas, os automóveis ficavam estacionados com os vidros abaixados por causa do calor e era comum que a chave de ignição fosse vista no contato. Na minha primeira vida podia-se viver sem susto, nem político roubava!