Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"O sotaque francês da velha Itápolis"

 

Dando uma volta no tempo, vou fundo na memória e visualizo um dos  cenários mais simpáticos da minha mais tenra Itápolis. Estou diante de uma casa verde-escuro, construída na linha da calçada, com um portão que leva a uma varanda acolhedora, porque sem degraus. Era sem dúvida a casa mais movimentada da antiga Rua Ruy Barbosa, vizinha da casa e lavanderia do Sr. Cuminato, na esquina da Av. Campos Salles. Tinha que ser movimentada mesmo, pois aquela casa simples abrigava uma grande família, de gente numerosa mas, antes de mais nada, muito ativa. Por ela circulava o tempo todo gente que fazia e tocava música, que ensinava, nas escolas e na sacristia, gente que entrava e saía para tocar a nossa cidade pra frente e pro futuro.

Aquela casa de jardim do lado e de quintal profundo não conhecia o ermo e a solidão, havia luz naquele espaço, havia sonoridade, havia vida. Era uma verdadeira forja de talentos, aquela casa que camuflava no seu aspecto simples, uma invejável riqueza humana. Ali ninguém agia movido por riqueza material, exibindo poder e ostentação. Tudo combinava com a época: tempo em que não havia carrões, noivas em limusines, comidas e docinhos de bufês. Era ainda tempo de simplicidade. As pessoas tinham mais tempo para cuidar do espírito, do saber, do amor ao próximo.

Os fundadores daquela família vieram de longe, de terras de França, em uniformes militares e em atitudes de mestres. Dentre tantas famílias de nome em elli, oni, aldi, ini, etti, oli, otti, ani,  de outras que vieram de Beirute ou de Hasbaia, aquela trazia nome excêntrico, terminado em et. Eram os Mallet. O membro mais velho deles, de que tenho viva lembrança, era Dona Julieta, que por laços de casamento criou a combinação Mallet-Cyrino. Dona Julieta Mallet Cyrino era filha do professor Júlio Ascânio Mallet e seu marido era o conhecido Juiz de Paz da cidade, Luiz Cyrino da Silva. Conheci de perto este homem, num dos episódios marcantes de minha modesta história de vida. Episódio que faço questão de contar.

Em fins de 1944 fui admitido no Ginásio Estadual de Itápolis, que ainda tinha um mixto de administração municipal com subvenção estadual. Para matricular-se o calouro tinha que pagar uma taxa anual de cento e sessenta e cinco mil réis. Como meu pai era contra que seus filhos estudassem (dizia que não queria ter filho “chupim do governo!”) e como éramos pobres, minha mãe resolveu fazer uma visita ao então prefeito municipal, Sr. Lucilo Alves Porto. Vestiu o seu melhor vestido, era uma roupa azul clara, com apliques de fustão na blusa. Vestiu-me e calçou-me, fato raro, e lá fomos nós para o velho prédio da Prefeitura, na praça do jardim, onde é hoje a agência do Bradesco. Na condição de filha do antigo prefeito Orestes da Costa Sene Jr., aliado do pai do Sr. Lucilo, também ex-prefeito Francisco Porto, minha mãe pediu ao prefeito Lucilo a isenção da taxa de matrícula no Ginásio, para que seu filho pudesse estudar. O prefeito,  que a recebeu de forma simpática e amistosa, respondeu que só poderia atendê-la, mediante a apresentação de um atestado de miserabilidade , era a regra, vejam só. “Bebé, disse ele, você deve ir falar com o Sr. Luís Cyrino, o Juiz de Paz, que é ele quem pode fornecer este atestado”  E lá fomos nós praquela casa verde. Quando do Sr. Luiz Cyrino ouviu de minha mãe a exigência do Prefeito, não titubeou, acionou a manivela do telefone, pediu à telefonista que ligasse para a Prefeitura e, quando o Prefeito atendeu, foi logo dizendo: “Lucilo, aqui é o Luiz Cyrino. Lucilo, custa-me acreditar que você está pedindo pra Bebé, filha do maior amigo do seu pai, este tipo de atestado! Você não pode atender o pedido dela sem isto, Lucilo?”  Não deu para ouvir a resposta do Prefeito, só sei que dali saímos direto de volta à Prefeitura, para pegarmos o ofício da isenção da taxa de minha matrícula. Este fato, que guardei na lembrança, palavra por palavra, diz bem do respeito e da autoridade moral daquele homem, respeito esse que emoldurou sempre o quadro dos Mallet-Cyrino.

Quero deixar registrado que este episódio em nada diminuiu a amizade entre as famílias do Sr. Lucilo e a nossa. Ao longo de minha vida esta amizade só cresceu e o Sr. Lucilo, marido da Sra. Adélia Vessoni,  pai da saudosa Nenê Porto Francischetti e do Lucilinho, bem mais tarde, quando eu e minha família passávamos por duros golpes impostos pela ditadura militar, correndo riscos, deu-me ajuda decisiva para que eu recuperasse o cargo de professora, que as forças da repressão haviam arrebatado à minha  esposa de então.  Usando de seu prestígio junto às autoridades da Capital, agiu sem pestanejar, por ser amigo e por achar justo.