Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Donana - Uma história alegre, mas triste"

Diante da casa em que nasci, à Avenida Francisco Porto nº 36, estávamos em 1932, anos trinta, havia uma casa construída na linha da calçada, com um portão lateral à direita de quem chegasse, de onde se avistava um terreno amplo, com três casas pequenas e um bambual portentoso que dava gosto contemplar. Na casa da frente morava uma senhora, na época já idosa, cabelos grisalhos, rosto moreno, alta e magra, que alguns chamavam de Sinh’Ana Baiana, mas que nós, os vizinhos, chamávamos de Don’Ana. Adentrando quintal a fora deparávamos com as três casinhas que eram habitadas por pessoas idosas, no geral; numa delas, um negro idoso e cego, que tocava uma viola, músicas que ele dizia virem do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, de onde ele viera ainda moço. Pelo terreno ciscavam várias galinhas, frangos, pintinhos e um galo garnisé.

Conforme fui crescendo já atravessava a rua de terra batida, entrava pelo portão sempre semiaberto, como fosse uma placa “entre sem bater” e ia ter com a Donana, que demonstrava muito carinho por mim, desde que nasci. Vivíamos então os anos 30, Itápolis ainda sem calçamento, sem água encanada, onde o poço e a privada eram personagens infalíveis em cada quintal. Donana, com as mãos suaves em meu ombro, me levava até a cozinha para me oferecer suas guloseimas. Lembro-me, como se fosse hoje, de sua sala cheia de enfeites multicoloridos e do altar que exibia uma grande quantidade de santinhos, estatuetas e flores artificiais confeccionadas por ela.

Falava com mansidão a minha “madrinha” e me contava, um pouco por dia, a sua vida, desde que veio, como retirante, a pé, do Norte da Bahia. Contou-me que era uma mocinha muito bonita, risonha e disposta a vencer na vida. Com as dificuldades de encontrar emprego, acabou se prostituindo, indo morar com as meretrizes, e por ser a mais bela, de rosto e de corpo, atraía os homens mais ricos da cidade, sendo por eles presenteada com ricas joias, moedas enormes de prata ou ouro e muito dinheiro e; como era previdente, foi juntando, guardando, escondendo e acabou ficando muito rica, por isto comprou aquela casa com aquele amplo terreno, onde construiu as casinhas.

Donana tinha muitas habilidades, bordava, tricotava, crocheteava e isto se via pelas toalhas que punha no altar, as toalhinhas nos pequenos móveis. Cozinhava muito bem e eu era o primeiro a ser chamado no portão para receber seus doces, seus salgadinhos. Mas ela também tinha hábitos que trouxe da sua terra e que a gente achava estranhos. Certa noite, em que brincávamos na rua, ela me chamou no portão: “Orestinho, vem aqui com a madrinha!” Fui correndo e tive uma surpresa, ela me pediu, com as mãos em concha, “Faz pipi aqui na minha mão!, é pra remédio, fio, pra passar nos óios!” Imediatamente atendi, pois eu tinha grande paixão por minha “madrinha. Ali mesmo ela passou aquele líquido em seus olhos, agradeceu-me com uma pataca de prata e se recolheu.

Outro ato diário da minha vizinha de frente era sair toda manhãzinha para ir à igreja comungar. Perguntei a ela o porquê deste hábito religioso, ela me disse, comovida: ”Eu devo muito a Deus, Orestinho, eu fiz muitas esposas sofrerem com a traição de seus maridos em meus braços. Hoje estou arrependida, por isto construí as casinhas e acolhi os desabrigados e a eles dou os alimentos e coisas de que eles precisam. Por isto que vivem alí o seu Joaquim com sua viola, a Dona Edwiges, a lavadeira, a Dita com seus filhinhos e você conhece os outros. Tenho muito a pagar pelos meus pecados da juventude”. Eu ouvi aquilo comovido e corri contar para minha mãe, que me surpreendeu dizendo que já sabia de tudo aquilo. E a paga dos pecados da Sinh’Ana Baiana, da nossa Donana, estava prestes a completar seu castigo.

Uma manhã em que fui vê-la e abraçá-la, como sempre fazia, vi que ela ostentava um trapinho preto que cobria parte de seu rosto.

Aquele trapinho cobria uma ferida que aparecera em seu rosto naquela manhã; e doía muito, conforme queixou-se a Donana. E aquilo não sarava, nem melhorava, ao contrário, ia aumentando em forma de bolhas cobertas pela pele arroxeada do rosto. E a dor aumentava. E a Donana sem dar um gemido. Logo começou a receber a visita do Doutor Artur Pinto, o Doutor Pinto, como era conhecido e morara naquela casa grande com varanda, sita na esquina da Av. 7 de Setembro com a Av. Florêncio Terra. Foi a primeira vez, em minha vida ainda criança, que ouvi a maldita palavra câncer.

Donana caiu de cama e tanto o médico, como minha mãe que a socorria quando preciso e como outros visitantes, todos se admiravam com a incrível aceitação resignada daquele que Donana dizia ser “castigo”. “Ela não dá um gemido, nem de leve, diz que está recebendo o merecido castigo”, diziam. E assim foi sofrendo, nossa querida Donana, a conhecida Sinh’Ana Baiana, que está enterrada no Cemitério Municipal de Itápolis, logo perto da antiga entrada principal, que era no começo da transversal de que quem vai lá, da cidade. Ela tinha seu nome de registro que está no seu túmulo, mas, por mais que me esforce, não me volta à memória. Pra mim será sempre minha madrinha e até agora, prestes a completar 89 anos, não deixo de rezar e pedir-lhe que me ampare. Acho que é por isto que tenho sido tão feliz e tranquilo em minha existência.