Histórias que não foram escritas

 

Orestes Nigro

"'“Xingar, às vezes, lava a alma! Boccaccio, sec. XIV"

Peço licença aos meus queridos leitores e especialmente às minhas queridas leitoras para, saindo um pouco de meu recato no uso das palavras, emitir algumas expressões um tanto quanto vulgares ou chulas, se assim preferirem. É que vou falar sobre o uso de tais expressões na minha mais tenra Itápolis. Xingar, debochar, agredir com palavras geralmente se faz  dentro de um contexto social, de hábitos e costumes e até mesmo histórico. Numa época em que nossa cidade não era pavimentada, não tinha água encanada, não tinha sanitários no corpo da própria casa, época em que se usavam muito os animais no trabalho, no transporte, tempo em que raramente apareciam homossexuais, e quando isto acontecia quase sempre eram do sexo masculino, época em que não existiam ainda os supermercados com seu sistema serv-lev, peg-pag, em que as farmácias ainda preparavam as receitas enviadas pelos médicos, época em que ainda se convivia com grande contingente de imigrantes recém chegados, vocês hão de convir que era uma época muito diferente da dos dias atuais.

Como a gente não tinha chuveiro, até que surgissem os famosos “Tiradentes”, tomava-se banho em bacias ou em tinas, barris cortados ao meio, feitos em madeira ou em metal. Nas casas, estes utensílios eram comuns, como eram comuns as vascas (que hoje chamamos de tanques e são bem menores e mais sofisticados), os coradouros (que se pronunciavam quarador), tudo isto para lavar e corar as roupas, Nestas circunstâncias os costumes eram bem outros.  As pessoas tomavam banho sentadas dentro d’água, na bacia. Quando era tempo de calor, água fria, no inverno, água morna. E quando o “banhista” soltava um pum durante o banho, ouvia-se um barulho característico e se viam pequenas bolhas na superfície da água. Daí surgiu um xingamento engraçado. Quando alguém queria mandar alguém “ir amolar outro, ir pentear macaco”, podia também dizer “vá peidá n’água!”.  Como, naqueles bons tempos, havia mato fechado ao redor da cidade, outro modo de dizer isto, quando o sujeito estava aborrecendo era “Vá cagá no mato” . Outro xingamento típico daquela época, muito engraçado mesmo, era “Vá tomá na peida!” (não consigo lembrar disto sem dar muita risada). Quando alguém soltava muitos palavrões, podia ser chamado de “boca de latrina” que era o outro nome da privada lá do fundo do quintal.

Outra coisa de se anotar era a entonação dos xingamentos. Quanto mais raivoso estava o boca suja, mais longo se fazia o xingamento. “Puta quipariiiiiiiiiuuuuuu!”, “Vá tomá no c....................................!”     Também eram muito usados adjetivos relacionados com doenças para ofender o desafeto; numa briga, por exemplo,  “Morfético”, “Lazarento”, (portador de lepra, hanseníase), “Seu tuberculoso!”,  “Sai pra lá, seu sarnento!”  Nós tínhamos uma vizinha muito brava que, quando brigava, mesmo na rua, costumava esbravejar chamando sua vítima de “Seu tobercoloooooooso!”, “Seu lazaraaaado” (aí certamente estava emendando lazarento com azarado), “Seu perebeeento!” (cheio de perebas, de feridas).

Na escola também havia maneiras diferenciadas de se atingir o desafeto com palavras, às vezes escritas também.  O homossexual, raríssimo de se ver, pelo menos os assumidos, eram chamados de mariquinha, de viado, de fresco, de  24,  número do veado na sequência meio alfabética do jogo do bicho.  Os alunos do Grupo costumavam surrupiar uns tocos de giz do coletor e escreviam no dorso de suas bolsas a palavra viado ao contrário, ou o número 24 também ao contrário, de modo que se a gente colocasse a bolsa frente ao espelho, este refletiria a palavra normal. Aí, na saída, quando a vítima caminhava distraída para casa, o danado se aproximava por trás e batia a bolsa nas costas ou nabunda do  coitado, imprimindo o que tinha escrito com giz. Na escola também usavam muitos apelidos que substituíam os xingamentos, quando a intenção era ofender. Se o menino era dotado de pernas longas e usava calça até o joelho, geralmente esta entrava entre as nádegas formando dois cones com a ponta para baixo. Ao passar pelos colegas, este infeliz logo ouviria alguém gritar “Olha o coador!”, já outro emendava “a vaca tá mascando”. Se o infeliz tinha pé chato, logo ouviria “Onde você vai, pé de pato?”

A zona de meretrício era pequena, ocupava um trecho da saída de Tabatinga, mas ninguém usava os termos zona, puteiro, putaria, diziam “as casas das mulheres da vida”, pois elas não eram chamadas de putas, elas eram mulheres da vida ou raparigas e estas palavras não pertenciam ao glossário dos palavrões.

Tais expressões de cunho popular fazem parte do linguajar, parte da linguagem de origem espontânea, emocional, fácil de se vulgarizar. Há linguistas que consideram que esta é a língua verdadeira, autêntica, em oposição à língua ensinada nas escolas. Na minha opinião, as duas têm o direito de coexistir. A língua que falamos para nos comunicar é um conjunto de códigos que o ser humano foi criando através dos tempos, códigos estes que, estudados e compreendidos nos possibilitam a comunicação pela palavra em vários idiomas, portanto, ambas tem enorme valor, tanto o linguajar das ruas, como a língua que sofre o controle da gramática. Se assim não fosse, estaríamos numa Torre de Babel.