Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Abertura de "Histórias Avulsas"

Nasci em Itápolis, no ano revolucionário de 1932, meados da primeira metade do século 20.  Abri os olhos para um mundo pacato, para um país “eminentemente agrícola”, como era qualificado, num estado que diziam ser “a locomotiva que puxa vinte e três estados”, numa cidade cheia de verde, rodeada de verde, de casas espaçosas, quintais sombreados pelo verde dos pomares, atapetado pelo verde das hortas e dos jardins. Quando cheguei ao tempo de sair pelo portão, pisei em calçadas de pedras claras e róseas, em sarjetas de pedras fogo, em ruas revestidas de pedregulhos, que só mantinham firme o chão durante as estiagens e se tornavam barro enlameado quando chegavam as chuvas de janeiro. A minha rua era de subida acentuada, o que fazia de nós os moradores lá de baixo. Lá bem no alto despontava uma casa enorme, com duas torres exibindo cruzes, de onde vinham várias vezes por dia os sons dos sinos a repicar avisos e de onde veio a minha fé, que nunca esmoreceu. A casa do Nono e da Nona ficava ali por perto, era só dobrar a Bernardino e descer até a esquina. A casa do tio Antonio era alcançada passando por um portão no fundo do nosso quintal, quintal com quintal, e a casa era virada de frente para aquela rua movimentada e perigosa, onde minha mãe não me deixava ir. Naquela rua também estava o tio Angelim, que se chamava Arcângelo, nome que eu achava lindo, pela sonoridade. O tio Pascoal morava na mesma rua barulhenta, mas um quarteirão pra frente, em direção à saída de Itajobi. O tio Roque ainda era solteiro e vivia na casa do Nono e da Nona. Esta era a família do meu pai, que se reunia na casa do Nono todos os domingos, depois da missa das dez, para comer a “pasta sciutta”  que a Nona servia numa enorme travessa de fundo branco com miúdas rosinhas cor de rosa por toda sua beirada. Sentávamos em torno de uma mesa composta por três cavaletes dispostos espaçadamente, sobre os quais meu Nono colocava três longas tábuas emparelhadas, cobertas por uma toalha cada domingo de uma cor. Depois do almoço, se era tempo de colher as frutas, meu Nono entrava no pomar trancado a cadeado, de onde voltava com um jacá repleto de laranjas, tangerinas, mangas, caquis, goiabas brancas e vermelhas, que a prima Terezinha ajudava distribuir. Ao sairmos para voltar pra casa, cada nora recebia um queijo cavalo feito pelo Nono, uma cestinha de frutas arrumadas pela Nona.

A casa da Vó Nenê era bem longe, lá no alto da Avenida 7 de Setembro, um quarteirão pra lá do Grupo Escolar, numa casa tão sólida que está firme lá, até hoje. Ainda vi por lá, solteiras, a tia Bibi, a tia Santinha, a tia Bizuca e a tia Cristina. A tia Loreta, já casada, aparecia por lá e tocava valsas ao piano, a tia Lucila vinha da fazenda trazendo quartos de leitoas e de cabritos. A prima Mariinha Sene ajudava na lida e nos divertia com suas histórias. Debaixo do pé de mangas burbom o balanço era a atração. Por causa da Vó Nenê, aprendi a cruzar a cidade, passando pelo jardim, com seu coreto e seu belvedere.

Meu mundo de criança foi-se ampliando devagar, primeiro a casa com seu quintal, seu poço, seu coradouro de roupas, sua parreira de uvas brancas e pretinhas; depois as casas dos vizinhos, Dona Filomena, seus bolinhos, suas fatias de pão italiano, suas netinhas Rosinha e Dorinha, suas filhas Margarida e Marieta que entravam e saíam daquela casa convidativa, de entrada sombreada por uma parreira enorme.  Do outro lado a casa da Dona Alice, seu Carlos Vessoni e aquele montão de filhas já moças, e o perfume deliciosos de maçãs, quando abriam a geladeira

Alunos da Escolinha da Dª Mazé

A Dona Mazé foi quem me tirou do bairro, ainda bem pequeno, para frequentar sua escolinha feita de sonhos. Poucas certezas eu tenho, uma delas é de que não havia, nunca houve e nunca haverá, neste mundo de Deus, outra escolinha como aquela, onde as paredes cantarolavam brincadeiras de crianças, onde a professora era uma Fada que nos tornava a vida uma fantasia e onde as portas do mundo foram-nos abertas para mostrar-nos o horizonte.

Itápolis do ano da Revolução de 32, dos carros de boi gemendo e cantando em suas subidas e descidas, das boiadas levantando poeira lá pelos lados do Antônio Rosa; terra dos troles, dos semi-troles e dos pés-de-bodes. Itápolis dos gritos do peixeiro na esquina do Trevisan, da carroça do Chico Tripeiro rodeada de freguesas, do carroção do lixo comandado pelo Mineco, dos sininhos da mula que puxava a carroça cheia de frutas e verduras do simpático Seo Manginelli, do bêbado Pécora que ficava parado e espantando a gente com seu olhar esbugalhado.

Como não morrer de amores por uma terra bela e acolhedora, que agasalhou o germe e nos acolheu em seu solo protetor, nos oferecendo um mundo e uma primeira vida sem armadilhas, sem tropeços, sem vícios, sem destemperos e sem a fria indiferença que só viria depois?  Minha cidade está presente em mim, intacta, cheirando a terra fecunda, vibrando com a alma oculta do passado que a erigiu. Dela eu parti um dia e por este mundo afora recolhi histórias que lhes vou contar.