Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Os sublimes sons da minha infância"

Você imagina quais eram os sons que predominavam junto aos ouvidos dos itapolitanos dos anos 20, 30, 40, 50, primeira metade do século passado? Então raciocine sobre os seguintes dados: maioria dos habitantes formada por imigrantes, filhos e netos destes; os imigrantes vindos da Europa eram mais propícios à assimilação dos costumes, dos gostos, do comportamento dos habitantes de sua nova pátria; os imigrantes oriundos de países orientais, tanto árabes quanto japoneses, eram, por cultura, índole e costumes, mais tendentes a se segregarem. Os habitantes brasileiros eram migrantes de uma grande diversidade de origens. Havia gente vinda de Minas Gerais, outros vindos do Mato Grosso (naquele tempo tínhamos um só Mato Grosso, é bom lembrar), alguns vinham do Vale do Paraíba, tínhamos nordestinos, tínhamos nortistas, tínhamos gente de Santa Catarina. A composição étnica da cidade era rica em variedade.

Diante desde cenário é fácil imaginar que se podia ouvir de tudo, desde as cantigas de roda bem do nosso folclore infantil, e brincar de roda era muito comum, o que mais se via nas praças, nos recreios das escolas, eram meninos e meninas cantando “O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada...” ou então, “lá na direita tem uma roseira, na direita tem, uma roseira,,, que dá flor na primavera, que dá flor na primavera!”. Na oficina dos Brunelli era comum se ouvirem cantar cançonetas napolitanas, como “Reginella compagnola”, “Funi culli, funi cullà” ( https://www.youtube.com/watch?v=a-qcBYdi_xI ),  “O sole mio” ( https://www.youtube.com/watch?v=ERD4CbBDNI0 ), “Facetta nera”, esta muito cantada no período da 2ª Guerra Mundial. Se você passava pela casa dos Ortega, lá na Vila Aparecida, podia ouvir a Hortência cantarolando músicas flamengas, marchas de passo doble. Passando pela casa do Sr. Wady Abdelnur, pela casa dos Lutaif, pela casa dos Burihan, era comum ouvirem-se as canções árabes, cantaroladas por alguém ou provindas dos gramofones.

Na frente de minha casa, ali na Francisco Porto, altura do antigo Posto Atlantic , dos Armentano, morava a lendária Sinhana Baiana, também chamada de Donana, que, no seu enorme quintal, onde reinava um majestoso bambual, mantinha uma espécie de vila, com três casinhas de madeira, nas quais dava abrigo a idosos e desafortunados. E lá morava a Dona Edviges, lavadeira muito bem conceituada, que vinha do longínquo e, pra nós, misterioso Vale do Jequitinhonha, sertão de Minas Gerais. O pai de Dona Edviges, quase cego e bem velhinho, gostava de tocar uma violinha caipira cheia de fitas coloridas presas às tarraxas das cordas. E ele tocava direitinho. E nós, moleques e meninas do pedaço, muitas vezes ficávamos por lá a ouvir as modinhas que Nhô Lindolfo tocava. E tinha uma que eu gravei pra sempre na memória, pela sua singeleza na letra, sua música lindamente harmônica, que ele cantava e acompanhava com acordes cheios que martelavam minha cabeça quando me deitava pra dormir. A letra dizia:

(refrão)   “O terra longe

Lá dondi  eu morei

Que terra boa

De pobre vivê

Quero uma gaio do seu jardim

Para meu campo enverdecê

Deistá, morena. Vô-mimbora mais vancê.

Pereyra da Viola

 

Zé Fortuna & Pitangueira

Escrevi este trecho, do jeito que Nhô Lindolfo cantava, acho que dá pra entender. “Deistá” é forma reduzida da expressão antiga muito usada, “deixa estar!”, que era dito para expressar uma promessa, às vezes uma ameaça, “deixa isto comigo” ou “pode apostar nisto”. “vancê” era a forma que os caboclos e os caipiras usavam para dizer “você”. Outras formas de “você”, muito usadas ainda na minha infância, eram “vós mecê, vós micê, vós suncê e  suncê”. Ouvi isto muitas vezes da boca da Comadre Vitalina, do parente Nhô Firmo, da parente Nhá Silvéria e outros caboclos.

 

Esta moda, que guardo na memória, foi-me devolvida com vida nas cantorias do grande, do perfeito violeiro e cantador, Pereyra da Viola, caboclo do Vale do Nhucuri, região de Teófilo Otoni, MG que, à maneira de Inezita Barroso, é também pesquisador de música popular do sertão. O som desta modinha singela cravou-se na minha mente e para mim este era o som do sertão. Se o sertão tinha um som, devia ser  o som da violinha do Nhô Lindolfo.

 

Esta é uma partezinha da sonoridade típica da minha mais tenra Itápolis, terra que deu ao mundo o poeta e cantador, José Fortuna e seu irmão Euclides.