Histórias que não foram escritas

 

Orestes Nigro

"Dia do Trabalho"

Sempre que chega este dia, esta data comemorativa que homenageia o Trabalho, lembro-me do meu pai. Na minha infância e boa parte da minha juventude, dormindo no quarto com uma das janelas do lado da cozinha, eu era acordado por volta das 5 da manhã, pelo barulho que meu pai fazia para acender o fogão à lenha, colocar o feijão pra cozinhar, a chaleira para ferver e fazer o café. Eu voltava a dormir, mas ele não. Nem bem às 6 horas começava a trabalhar na sua oficina de fundo de quintal. Dava duro o Sr. Vicente! Era trabalho pesado, na bigorna, no fole, na máquina de furar, no soldador em brasa, na tarraxa, no bater do martelo. Logo em seguida era o Romeu que entrava na lida da oficina; o Nicolino ia abrir a loja de ferragens do tio Antônio, lá na Campos Salles. Minha mãe e a Zizinha já se ocupavam da casa, da cozinha, da vasca de lavar roupas. Só nós, crianças, ficávamos à parte, brincando, indo à escola, ajudando a recolher a lenha, a varrer as folhas secas do quintal. Éramos os beneficiários do trabalho.

Mamãe e Papai, nossos maiores exemplos de vida

Do trabalho de meu pai, de minha mãe, de meus irmãos mais velhos vinha o sustento da casa, o sustento da família.  Mesmo ainda pequenos, nós, crianças, sabíamos disto, minha mãe sempre nos explicava as coisas da vida. Tínhamos grande orgulho de nosso pai e de nossa mãe. Eu admirava meu irmão Nicolino que já tão novo trabalhava fora, o dia inteiro e, à noite, tinha disposição para nos divertir com o cineminha na parede, coisa que ele inventou.  Admirava a força do Romeu, sempre se adiantando para rachar a lenha, podar uma árvore, carregar pilhas de chapas de moldagem, como era forte e disposto o nosso Romeu. Era uma família, uma vida envolvidas no Trabalho!

Um dia, já crescido, perguntei para meu tio João, que era gerente da Pernambucanas, que ficava vizinha do Boulevard Itápolis, eu queria saber quem eram aqueles  homens que estavam  sempre sentados no Boulevard, sempre vestidos de ternos, alguns exibindo a corrente de ouro que ia de um bolso ao outro de seus coletes. O que faziam eles? Qual era seu trabalho!  Então o tio João me explicou que aqueles homens bem vestidos, só um deles vestia um terno mais simples, de brim cáqui, que eles eram capitalistas. - O que é isto, tio? Ele me explicou que eles tinham muito dinheiro, tanto que sobrava para dar emprestado a quem estava precisando, bastava devolver-lhes um valor a mais, uma espécie de aluguel daquele dinheiro. Pronto! Formara-se na minha cabeça o conceito da dicotomia Capital e Trabalho.

Estaria eu me tornando um menino precoce do marxismo?  Claro que não! Ele, Marx, não inventou nem um nem outro. Meu primeiro entendimento se formou diante de fatos reais, não de teorias!  Minha cabeça rodou vários dias decodificando aquele encontro dilêmico. E eu acabei decidindo de uma vez por todas que meu pai era abastecedor da fonte onde aqueles homens bebiam. Meu pai era o Trabalho, eles eram o Capital. Daí para frente minha visão da sociedade se pautou naquela explicação do tio João. 

Precisei virar comunista por causa disto?  Precisei virar conservador irado por causa dos tios ricos que eu tinha?  Graças a Deus, que me deu capacidade de discernimento, nada disto aconteceu, me equilibrei com perícia e bom senso entre as duas correntes. Num mundo em que uns nascem fortes, outros franzinos, em que uns têm ouvido musical, outros são desafinados, em que uns tem memória visual afiada, outros memória auditiva, outros memória motora, outros todas as três juntas. Num mundo plural onde parte é deserto, outra é Amazônia, onde parte é gelo, outra colinas verdejantes, é preciso conviver com a diversidade, com as diferenças individuais que são inegáveis. Querer passar um rodo em cima dos humanos e torná-los iguais, sem tirar nem por, é bater de frente com a natureza e a condição humanas.

Fazer do Dia do Trabalho, festa exclusiva dos que lidam com ferramentas, dos que pegam no martelo, na enxada, dos que vestem macacão é sordidamente injusto! Eu fui professor, meu vizinho é engenheiro, quem me trata da surdez é uma médica, quem me vende o pão é um comerciante, somos todos Trabalho! Hoje é meu dia também, eu faço a minha festa brindando à data com minha consciência! O velho lá do Boulevard vive de rendas? Cada um curte a velhice como para ela foi levado. Não nos cabe e nem fica bem invejá-los, façam bom proveito. Tenho enorme orgulho de meu pai, de meus irmãos, de pertencer à categoria que se assenta no Trabalho. Trabalhei quarenta e dois anos, mesmo quando a ditadura me proibiu de trabalhar!  E hoje é meu dia,  Dia do Trabalho!