Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Ela dava mais brilho às Letras

O ambiente, o clima, a atmosfera da universidade brasileira nos anos 50, saindo da USP, em São Paulo, da URJ, no Rio, da UFP de Pernambuco em Recife, era morna, sem participação efetiva de seus membros docentes e discentes na vida nacional. Por isso, talvez, aquelas poucas que viviam num clima de ebulição cultural, político-ideológica  ganhavam destaque de duas maneiras, positivo para aquela parte da população idealista que vive à espera de grandes mudanças, de transformação do mundo e negativa para boa parte das gentes que só se sentem seguros com a rotina, com o passo contido, alimentando um forte temor pelo avanço.

Para mim, que chegava de um lugar de vida pacata, toda aquela ebulição assustava um pouco no início mas, com o passar do tempo, conhecendo as pessoas que ali conheci, vi crescer uma vontade irresistível de sorver aquilo tudo como quem chegou de longe com fome e encontrou o manjar dos deuses.

Eu pesquisava na biblioteca quando comecei a ouvir uma voz de mulher falando sobre o poeta Baudelaire, era uma francesa de pronúncia agradável, dizendo o que pensava do grande poeta. Levantei-me, curioso, fui até a antessala para ouvir melhor, era uma moça magra, esguia, cabelo loiro penteado no estilo rabo de cavalo, que apontava o dedo para a página de um livro e falava com entusiasmo sobre a riqueza lírica do autor de “As flores do mal”, ouvida com interesse por um rapaz que eu já vira circulando na escola e que era chamado de Marins. Fingi que não era comigo, fiquei sorvendo aquela aula magnífica. Pensei “deve ser professora de literatura, talvez assistente do professor Alfred Bonzon.”

Ela fechou o livro, foi saindo tranquila, olhou pra mim e perguntou:

- “Você é calouro?” 

E isso foi o início de uma das amizades que eu mais prezei nesta vida. Vilma era brilhante sem ser pedante, era culta sem ares de superioridade, tinha bom gosto em tudo e era de uma simpatia cativante. Vilma era aluna, estava no último ano do curso de Letras. E tinha um namorado, um colega de faculdade que cursava Química. Como eu era aluno do curso noturno e o via sempre pelos corredores, penso que ele também era do noturno. Simples,  ar bonachão mas um pouco tímido, o namorado da Vilma de Katinsky era Adhemar de Barros Filho, cujo pai era o famoso político de então. Eu arranjei emprego à noite e por isso transferi-me para a turma da manhã, passei a ver mais vezes minha admirável colega Vilma, mas não vi mais seu namorado. Bem mais tarde percebi que haviam terminado.

Vilma de Katinsky, assim como o Flávio e a Maria Edith, focalizados na semana passada, era destas pessoas de inteligência fora do comum, com um domínio perfeito da língua portuguesa e de tudo que aprendesse. Era brilhante aluna do grande Mestre Theodoro Henrique Maurer Jr. e do seu assistente em Filologia Românica, Professor Nicolau Salum, tanto assim que se tornou uma especialista nessa matéria.

Outra disciplina em que Vilma pontificava era Língua e Literatura Italiana. O Professor Italo Betarello, sua assistente Carla Inama, seu auxiliar de ensino Antonio Lázaro de Almeida Prado, nas nossas reuniões de gabinete, faziam planos para a carreira da Vilma dentro da equipe. Não preciso me referir ao sucesso dela nas demais disciplinas, falava espanhol com desenvoltura, o francês dela me encantava e Vilma fez brilhante carreira como professora, como tradutora, como pesquisadora e como autora. Como ela logo se formou fui perdendo contato com ela, a distância contribuiu para o afastamento, mas não para esquecer. De longe fiquei sabendo que minha antiga colega tornou-se Vilma de Katinsky Barreto de Souza, tornou-se doutora em Filologia Romanica e em Língua e Literatura Italiana, publicou trabalhos de significativa importância no meio literário e universitário e sei que, embora aposentada, continua produzindo sua obra admirável.

Quando tivemos convívio Vilma de Katinsky era para mim o retrato mais fiel da nossa Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e para toda nossa comunidade acadêmica, Vilma era “a Flor Neurótica do Centro”, aposto que ela mesma, brincando, se atribuía.

Vilma de Katinsky, Maria Edith do Amaral Garbogini di Giorgi, Flávio Vespasiano di Giorgi são a ponta do grande iceberg cultural que as águas revoltas da Rua Maria Antonia abrigavam. Ainda tenho muito a revelar, aguardem.