Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

“Os degraus da carreira universitária em épocas passadas”

A graduação universitária até os anos 60 era muito simples se comparada com a configuração de carreira que temos hoje. Nas faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, destinadas fundamentalmente a formar professores de nível secundário, para o Ginásio e para o Colégio, os cursos duravam quatro anos, três dos quais se destinavam à formação específica do especialista em Línguas (Português, Latim, Grego, Francês, Inglês, Alemão, Espanhol, Italiano) em Geografia, em Geologia, em História, em Matemática, em Física, em Química, em História Natural (Botânica, Zoologia, Mineralogia, Paleontologia, Biologia), em Sociologia, em Psicologia, em Administração Escolar, em Pedagogia, em Filosofia, em Lógica.

Os Cursos de Letras desenvolviam, paralelamente, ao ensino de Línguas, estudo das literaturas respectivas a cada cultura, de acordo com a língua de seus autores. O quarto ano era o ano da licenciatura, o último do curso normal e era enriquecido com as disciplinas ligadas às técnicas de ensino (Didática Geral e Didática Especial) e ao preparo do professor formador (Psicologia da Criança e do Adolescente).

O formando dos diversos cursos da Faculdade de Filosofia recebia o título de licenciado. Os licenciados que pretendessem seguir carreira universitária, se matriculavam nos cursos de especialização, com duração de dois anos e aqueles que fossem indicados pelos catedráticos ingressavam nas atividades das disciplinas de sua escolha, podendo desenvolver pesquisas e/ou colaborar no ensino.

Nas antigas faculdades se desenvolviam, também, os cursinhos preparatórios aos vestibulares. Os Centros Acadêmicos, também chamados de Grêmios, se encarregavam de organizá-los, de recrutar seus professores e de administrá-los. Os cursinhos não tinham fim lucrativo. As Faculdades colaboravam com os diversos cursinhos existentes na Universidade, realizando concursos para a escolha dos professores, geralmente pertencentes dos quadros de ex-alunos e de pretendentes à carreira universitária.

Os concursos para esse fim obedeciam os critérios rigorosos dos concursos  para o Magistério Oficial do Estado. Na época em que ingressei na Filosofia, assim como o nosso Cursinho da Maria Antônia,  eram famosos os Cursinhos da Politécnica (Engenharia da USP), da Medicina  de Pinheiros (USP), das Arcadas (Direito do Largo São Francisco - USP) e o Cursinho da PUC. O primeiro cursinho particular, com esse nome, surgiu no ano de 1956, não tinha um nome comercial nos seus primeiros meses, mas visava lucro e mais tarde ganhou o nome de Cursinho Objetivo.

Para chegar ao topo da carreira de professor de uma Faculdade, tornando-se um Catedrático, era necessário primeiro que a Administração da Faculdade, por ato de seu Conselho Técnico Administrativo, colocasse a Cátedra em concurso oficial, anunciado em edital publicado no Diário Oficial do Estado e que houvesse candidatos com experiência comprovada, título de doutor na matéria e obras publicadas.

Para obter o título de doutor, o indivíduo formado pela Faculdade devia inscrever-se para a defesa de uma tese que se referisse a assunto ligado à disciplina escolhida, com tema estritamente original, isso é, ainda não tratado e desenvolvido por ninguém especialista no campo; o pretendente pleiteava, entre os docentes, a nomeação de um “diretor de tese”, uma espécie de orientador, que tinha por tarefas investigar se o assunto era de interesse acadêmico, se era realmente original, isso feito, assumia o papel de orientador, examinando o desenvolvimento do trabalho.

Concluída a tese, essa era submetida ao parecer final do seu diretor que, após considerá-la em condições de se apresentar à banca examinadora, fazia as tratativas para organizar a “defesa de tese”, acomodando data, hora, local e composição da banca, que devia ter doze membros, tirados do corpo docente da faculdade e de especialistas no assunto, convidados.

Na data e local marcados o candidato se apresentava, começando por uma explanação em que expunha sua tese, justificava-a, demonstrava sua importância como contribuição à cultura, ao ensino e sua utilidade no campo prático;  em seguida se submetia a uma sabatina, respondendo às indagações dos membros da banca. Ao fim da defesa, a banca se reunia e formava seu parecer, oferecendo seu veredicto. Aprovado, ali o candidato recebia, de forma solene, o título de doutor.

Naquela época dava-se toda importância aos exames escritos e orais, desde o vestibular, até à defesa de teses e aos concursos do magistério oficial; os candidatos deviam provar seus conhecimentos escrevendo e falando. Era uma exigência que dava maior credibilidade à eficiência das provas e também à garantia de se outorgar títulos a pessoas verdadeiramente merecedoras dos mesmos. É claro que, como nada é perfeito, mesmo em número ínfimo de registros, havia casos comprovados de irregularidades na obtenção tanto dos títulos como das cátedras.

Era sobejamente sabido que tudo era orquestrado para que o candidato à defesa de tese fosse aprovado. Ao diretor de tese cabia decidir se aquele trabalho merecia ou não ser levado diante de uma banca examinadora. Houve inúmeros casos em que, depois de dar ao candidato várias oportunidades para corrigir as imperfeições contidas no seu trabalho, vendo que as tentativas se mostravam infrutíferas, o diretor ou aconselhava o seu orientado a desistir daquele objetivo ou então, no caso de este não desistir, o diretor é que deixava o posto, oficialmente.  

Consequentemente, se isso não ocorresse, se o diretor de tese indicasse seu orientado à defesa, por consenso ele estava previamente aprovado. Houve casos em que as manobras protetoras ao candidato foram tão descaradas, que a comunidade universitária se organizou e protestou com veemência. Na nossa Faculdade de Filosofia, no ano de 1955, foi disponibilizada a concurso a Cátedra de Literatura Portuguesa, originalmente ocupada por eminente mestre vindo da Universidade de Coimbra, o Doutor em Letras, Professor Fidelino Figueiredo, que deixou o cargo no fim dos anos 40.

Seu sucessor, em caráter interino, foi o Professor Antônio Soares Amora, que se tornou seu genro e, apesar de ser cearense, desenvolveu um sotaque lusitano bem carregado. Quando a Cátedra de Literatura Portuguesa foi posta em concurso, ele apareceu como único candidato, o que despertou enormes suspeitas entre os alunos e considerável número de docentes da Faculdade. Como de nada adiantassem os protestos verbais e escritos, no dia da defesa da Cátedra, assim que o Professor Amora foi declarado aprovado com louvor, uma comissão de alunos dirigiu-se a ele e lhe entregou um manifesto, que foi lido por um dos participantes do ato. Eu estava presente e gravei na memória o parágrafo de abertura do manifesto, do qual destaco:

- “O Professor Antônio Soares Amora, que herdou de Fidelino Figueiredo o sotaque, a filha e a biblioteca, hoje herda a Cátedra de Literatura Portuguesa, à qual se apresentou como candidato único, embora inúmeros mestres especialistas de renome na matéria fossem dados como certos concorrentes”.  

Eu fui aluno do professor Amora, suas aulas eram excelentes, seu conhecimento das Letras Lusitanas era patente, sua atuação nos meios culturais era merecedor de aplausos, sua aprovação como Mestre era praticamente unânime, embora estranhássemos seu sotaque. O que esteve em questão neste episódio não foi sua competência, mas o caminho obscuro que caracterizou sua condição como candidato único. As suspeitas se avolumaram e deram motivo a manifestações, porque na história de outras defesas de cátedras aconteceram irregularidades de conhecimento público. E, naqueles tempos, os estudantes eram, na maioria, ativos e tinham atitudes cidadãs.