Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Uma reviralta inesquecível"

Eu já falei dele, mereceu um destaque quando falei dos tipos populares da minha mais tenra Itápolis. Hoje vou esmiuçá-lo, vou detalhá-lo e vocês vão ver que ele merece passar para a história de nossa cidade. Eu era um menino, entre sete e oito anos de idade, quando ele e sua família vieram morar numa casa modesta que havia, então, no terreno vizinho de onde fica hoje a casa de minha irmã Mariza Izabel. Nós morávamos na casa quase em frente, o número, naquele tempo, era o 36 da Avenida Francisco Porto.

Inácio Kojorowski, de origem polonesa, tipo claro, rosto redondo, olhos azuis, magro mas forte, era pintor de parede. Sua mulher era a Dona Dalila, tipo moreno, cabelos nos ombros, cuidava da casa e dos filhos e, para ajudar o marido, lavava e passava roupa pra fora; uma guerreira, pois tinha cinco filhos aos seus cuidados.

Logo fizemos amizade com eles. O mais velho era o Milton, devia estar com seus 20 anos, era um rapaz sério, jeito de responsável, trabalhava e era um esteio para aquela mãe que dava um duro danado. Depois do Milton vinha o Paulo, que já tinha lá os seus 16 anos. Paulo era o mais parecido com o pai, tipo bem claro de pele, de olhos e de cabelos. Como o Milton, também era um filho companheiro da mãe.

Aí vinham os meninos. Com seus 11 ou 12 anos tínhamos o Luthero, menino robusto, espigado, claro de pele e de olhos, mas de cabelos escuros, Luthero era o terror dos meninos do bairro, pois gostava de ameaçar-nos, vivia dizendo que ia nos pegar, morríamos de medo dele. Só mais tarde descobrimos que aquilo não passava de uma diversão dele, pois nunca bateu em ninguém.

Um pouco abaixo, com seus 8 ou 9 anos, vinha o Saulo, tipo puxado à Dona Dalila, com cabelos levemente ondulados, pele menos clara que a dos irmãos, Saulo era dócil, tratava seus vizinhos com muita educação e respeito, gostávamos de brincar com ele. A única menina, a caçula, com 6 anos, era a Sarah, tipo bem polonês, cabelos lisos e curtos, pele bem clara mostrando algumas sardas, muito tímida e agarrada à mãe. Uma boa turminha, como acabam de ver.

Vocês notaram os nomes dos filhos do Inácio? Tirando o Milton, todos ostentavam nomes bíblicos. O Inácio era evangélico, pertencia à Irmandade Evangelista da Congregação Cristã no Brasil. Mas não era um crente muito bem comportado, como a maioria de seus irmãos de crença. Inácio era bem chegado numa cachaça.

Trabalhava com afinco, era um bom profissional, mas depois do expediente quase nunca ia direto pra casa. Tinha que passar e dar uma parada no boteco. E chegava em casa bem mamado. Tomava seu banho, jantava e começava a implicar com os filhos e com a mulher. E logo a gente ouvia os gritos, o choro dos mais novos. A coisa estava ficando insuportável. E aí entraram as vizinhas. Puxadas pela minha mãe, a Dona Marieta Mortati, Dona Filomena Armentano, as irmãs Vessoni, Isabel e Ivone e outras vizinhas do pedaço começaram a aconselhar a Dona Dalila.

- “Reage, Dona Dalila!” diziam elas. - “Não fique aí aguentando as agressões dele, reage que ele endireita!” Dona Dalila ouvia aquilo com a expressão de quem pensa - “Mas como? Ele é forte, ele é o chefe da casa!”

Mas os dias de valente do Inácio estavam contados. Uma noitinha, quando ninguém esperava, ouviram-se os gritos, mas eram os gritos dele. Tomou uma tunda de Dona Dalila! Na vizinhança aquilo era como uma vitória num jogo de futebol. A torcida festejava cada “Aiiiii” do Inácio como se fosse um gol. Depois veio o silêncio, as luzes da casa se apagaram e no dia seguinte um novo sol raiou praquela família! O Inácio transformou-se como num milagre. Chegou cedo em casa, do trabalho, tomou banho, quando sentou-se à mesa para jantar, tirou do bolso as balas que trouxe para os filhos e uma latinha de pó-de-arroz “Lady” que tinha comprado para Dona Dalila.

Na noite seguinte, era um sábado, a vizinhança viu, incrédula, o Inácio sair ladeado pelos filhos, todos arrumadinhos, para ir passear no Jardim. Lá comprou pipoca pra eles, balas, outras guloseimas. Domingo a família foi toda à igreja, aquela lá da Rua 13 de maio, agora chamada de Ricieri Antônio Vessoni. E aquilo passou a ser rotina. Era a volta do filho pródigo ao seio de seus irmãos. Uns anos depois eles se mudaram para uma casa bem melhor, na esquina da Rua Padre Tarallo com a Campos Salles, bem em frente onde hoje tem aquele arranha-céu.

Vicente Celestino, o cantor preferido do Dr. Lyra

Inácio passou a se interessar por política, era correligionário fanático do Dr. Eduardo Amaral Lyra, tanto que, no dia do aniversário deste, o Inácio “alugava” a ZYQ 4, Rádio Difusora de Itápolis, que passava o dia tocando, uma atrás da outra, todas as músicas do tenor Vicente Celestino, todas com a oferenda: - “Vamos ouvir agora, com Vicente Celestino, a canção “O Ébrio”, que Inácio Kojorowski oferece ao querido Dr. Eduardo Amaral Lyra, como homenagem ao seu aniversário!” E assim ia o dia todo, com os itapolitanos ouvindo “Porta Aberta”, “Patativa”, “Hoje rasguei o teu retrato”, “Coração materno” e todo o repertório trágico-romântico do consagrado ídolo da antiga música brasileira.

Geraldo Hauers, o querido "Baianinho"

Inácio Kojorowski, com sua conversão, tornou-se um pai e um marido exemplares, angariou inúmeros amigos e o respeito de todos. Eu mal chegara a São Paulo para estudar quando tive a última notícia sobre meu antigo vizinho. Fui à noite visitar meu amigo de infância e juventude, Geraldo Hauers, o Baianinho, que morava num hotel da Praça João Mendes, bem ao lado dos fundos da Catedral da Sé. Fui lá para convidá-lo a ir morar conosco na Pensão da Dona Patrocínia.  O porteiro me disse: - - - “Sobe lá, ele acabou de subir! Veio buscar a correspondência!”

Quando me aproximei do quarto, ouvi os soluços do Baianinho, não hesitei, entrei e vi meu amigo aos prantos, mostrando-me a carta que Seo Nenê, seu pai, lhe enviara. Peguei a carta e li a notícia.

- “Nosso amigo, Inácio Kojorowski morreu anteontem, fui no seu enterro ontem! Uma tristeza!” O Baianinho tinha verdadeira adoração pelo Inácio, o homem que reconquistou a dignidade e a admiração de seus semelhantes.