Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Gripe, uma pausa no cotidiano"

Eu tive um amigo muito culto, muito inteligente, que quando via a gente gripado, fazia questão de aconselhar: “Cuide-se muito bem, amigo, cuide do corpo e do espírito! Gripe não é doença, é um estado de corpo e de alma!”

Quando ela chega, não tem jeito...

E toda vez que contraio uma gripe, coisa que me obriga a entrar em recesso, fazendo pausa às andanças, aos encontros com amigos, diminuindo as visitas às páginas da Internet, às leituras, aos meus hobbies, o que me leva a uma espécie de inércia, passo o meu tempo a refletir sobre tudo que me cai à mente. E uma das coisas que me vejo fazendo é a tentativa de entender ao fundo aquela categórica afirmativa do meu amigo. Será a gripe um estado de corpo e de alma?

Aí me vêm à lembrança as minhas gripes periódicas, que começaram bem na infância, naquele quarto da casa em que nasci, em tempos de forro de pano, de janela sem venezianas, de poeira da rua de terra, de vento sibilante.

Lembro-me que o cheiro que mais me atingia era o das frituras no fogão à lenha, que me deixavam confuso entre a gulodice e o enjôo. E aí eu constato que sempre foi assim, todas as minhas gripes foram iguais, desenvolvendo em mim as mesmas sensações, os mesmos desejos, as mesmas repulsas. 

Prostrado naquela cama de colchão de palha, passeando os olhos nas manchas do forro que ganhavam formas e às vezes vida, ouvindo os ruídos que indicavam que lá fora a vida continuava para o meu pai, para minha mãe, para meus irmãos, só se interrompendo para aquela rápida visitinha que me faziam, pondo a mão a minha testa, acertando as cobertas que estavam desalinhadas, logo voltando ao seu trivial.

Dali eu ouvia as marteladas na bigorna da oficina do meu pai, ora dele, ora do Romeu; dali eu ouvia os choros e as risadas dos meus irmãos mais novos, a conversa dos passantes na calçada, o canto das rodas dos carros de boi que chegavam com o café em coco ao depósito do vizinho.

Todas essas sensações competiam espaço com os sintomas, com as dores, com o rosto afogueado pela febre, com a minha tosse, os meus espirros. E toda vez que me via gripado, acamado, ressurgia infalivelmente a predileção irresistível pelos bolinhos de arroz, que logo me eram servidos pela sábia intuição de minha mãe.

Estou ainda me convalescendo de uma das mais duras gripes que já tive. E essa foi tão aguda, tão torturante, tão insistente, que nada que se acrescentou a mim e à minha forma de viver, desde aquela infância, nada conseguiu livrar-me da dependência daquela cama, daquelas cobertas, daquela necessidade do escuro, da dedicação envolvente da Mara e das perseverantes reflexões.

A esta altura da vida sinto que está na hora de concluir minhas conjecturas, de responder às minhas indagações, pelo menos essas sobre o que é a gripe. E me rendi àquela decretação convicta do meu grande amigo, Norman: a gripe não é doença, é o estado d’alma que força o corpo a aderir, levando a gente a pensar a vida, a reconhecer sua fragilidade, a sentir que é possível deixar tudo pra lá e ficar interpretando as silhuetas das manchas dos forros de pano que nos protegem do buraco negro do infinito.

Nada se assemelha à gripe, estado de corpo e alma que nos visita desde a mais tenra infância e que tem a fidelidade dos encontros periódicos. Será doença um estado de corpo e de alma que raramente leva seu escolhido à morte? Você já ouviu contar que alguém morreu de gripe?, a não ser destas que tem sobrenome, gripe A, gripe espanhola, gripe de tal?

Mas aposto que você tem também uma coleção de registros de sensações, reações, gostos, cheiros, sons que são típicos da sua gripe. Cada um tem a sua gripe, toda particular, toda sua, única e inigualável. E todas elas nos remontam à infância. A minha me reconduz à casa da Av. Francisco Porto, nº 36, do município de Itápolis, berço da minha fidelíssima amiga, a Dona Gripe.