Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Uma alma branda, um autêntico filho de Deus"

 Em crônica anterior abordei a importância do médico na antiga sociedade itapolitana. Era uma característica de nossa cidade fazer do médico o centro das atenções, competindo com o vigário da paróquia e até com o prefeito. Alguns tiveram tamanha influência e prestígio em nossa sociedade que lhes foi impossível resistir à tentação dos holofotes da política. O alto conceito de que gozava o nosso tradicional Hospital de Misericórdia, prestígio que atravessava os limites de nosso município, servia de moldura para os nossos não menos ilustres doutores.

Tivemos inúmeros médicos de grande destaque, pela sua competência profissional, esplêndida perícia nos diversos procedimentos médicos, pela denodada devoção aos sagrados princípios de sua missão humanitária. Alguns destes profissionais tornaram-se objeto de verdadeira idolatria. Enfim, o médico, em Itápolis, era quase um semi-deus, sem nenhum exagero. Quem viveu naqueles tempos pode testemunhar em meu favor. Uns empolgavam pela simpatia, outros pela grande perícia como cirurgiões, outros por estarem sempre atualizados com o progresso da ciência médica, outros por sua presteza no atendimento, fosse no consultório, no hospital ou na casa do doente.

Dr. Henrique da Silva Ramos, o querido Dr. Ramos

Há tempos venho atraído pela ideia de fazer um destaque e falar de um grande médico que tinha como marca de sua personalidade a bondade. Posso falar dele como médico e como pessoa, posto que as circunstâncias contribuíram para que eu privasse do gentil acolhimento de seu lar. Falo do nosso vizinho do casarão que foi do Dr. Paulo Brasil e que hoje pertence à família Mucari. A doce pessoa de que trato aqui chamava-se Henrique da Silva Ramos. Muitos hão de se lembrar dele, homem de gestos suaves, olhar de doçura e generosidade.. Vindo lá das águas de Serra Negra, trazido para Itápolis pela sua esposa, filha de nossa terra, Dona Zenith (que se pronunciava ze-ní-te mesmo), filha de Dona Noêmia e do Sr. Miguel Rios, homem de negócios que morava numa casa rente à calçada, na descida da antiga Rua Rui Barbosa, entre a Av. Florêncio Terra e a Av. dos Amaros, defronte à casa do Edmundo Massari.

O Doutor Ramos, como o chamavam, tinha o jeito do brasileiro caboclo, desses que fumam cigarro de palha, mas que fumava Líncoln, era tímido com os estranhos e discreto com os amigos e conhecidos. O Dr. Ramos trabalhou no Posto de Saúde, no Hospital de Misericórdia e mais tarde na Casa de Saúde São Lucas.

No tempo em que fomos vizinhos, ele atendia também em seu consultório, no subsolo do casarão em que morava. Pude ver legiões de pessoas pobres que ele atendia de graça e a quem fornecia remédios, aplicação de injeções, curativos. Agia com todos com a mesma doçura e simpatia. Ele e Dona Zenith ficaram amigos de minha família e Dona Zenith não passava um só dia sem sentar-se em nossa cozinha enquanto minha mãe preparava o almoço. Eles tinham uma empregada muito simpática, querida em todo o nosso pedaço, a Zenaide e, à noite, quando saíam para ir ao cinema, hábito deles, vinha a Esmeralda, uma morena bonita, tomar conta da Magda e da Jana, suas filhas que beiravam os seis, sete anos de idade. A Jana, eu fiquei sabendo, casou-se com o Cléber, filho de Dona Zita e do Sr. Guilherme Marconi. Da Magda, infelizmente, não tive mais notícias.

Nossa amizade cresceu tanto que quando minha mãe teve a Maria Cecília, isto nos idos de 1944, meus pais a deram para que ele e sua esposa a batizassem, tornando-se compadre. Esta irmãzinha foi acometida de uma grave infecção intestinal, em fevereiro de 1946.  Este Dr. Ramos se debruçou sobre sua afilhada e fez de tudo para salvá-la. Mas era tempo em que não havia antibióticos e a doce e linda Maria Cecília se foi. Eu vi aquele homem de atitudes serenas se desesperar, seus olhos enormes se encherem de lágrimas e passados alguns dias, Dona Zenith veio nos comunicar que estavam de mudança, que “o Vico não suportava olhar pra nossa casa sem sofrer pela perda da afilhada”. Vico era o apelido carinhoso com que era chamado pela Dona Zenith. Mudaram-se para uma casa na Av. Florêncio Terra, na vizinhanças do Sr. Miguel Rios e o Dr. Ramos, envolto na sua humilde timidez, ficou cada vez mais distante de nós.

Itápolis teve uma fase em que os médicos se dividiram em duas alas políticas antagônicas. Foi, na minha modesta opinião, um período de certo obscurantismo que é bom a gente esquecer. O Dr. Ramos ficou do lado da
Casa de Saúde São Lucas, talvez por maior identificação com os médicos que o construíram e instalaram. Mas isto  certamente não dividiu seu coração, ele viveu sempre como o médico  de todos.  

Como aqui eu trato de histórias, pessoas, famílias da “minha mais tenra Itápolis”, isto é, da nossa cidade dos anos 30, 40... cumpre-me registrar aqui que o Dr. Ramos casou-se de novo, o que só soube agora . Casou-se com Dona Iris Orsatti, prima de Dona Zenith, falecida precocemente. Dona Iris é de família de São Paulo e seu pai era irmão da Dona Noêmia, sogra do Dr. Henrique. Ela mora aí na nossa cidade, no Jardim Campestre. Ela e o Dr. Ramos tiveram um filho, o Henrique da Silva Ramos Filho, que vive na cidade de Osasco. Conversei agora há pouco com ela, pelo telefone, vou conhecê-la pessoalmente na próxima ida a Itápolis, pois achei-a muito atenciosa e simpática.

Certa feita, meu amigo Zezinho Trevisan falou com muito carinho do Dr. Ramos e manifestou sua estranheza de que não lhe deram até hoje nenhuma placa de rua na cidade, cujo povo ele serviu por tantos anos. Eu compartilho desta estranheza, assim como acho inexplicável que Vicente Nigro, meu pai, o compadre do Dr. Henrique da Silva Ramos, não tenha merecido ainda esta honraria, já que sua “Bombas Nigro” levou o nome de Itápolis a grande parte do território nacional. Um dia, quem sabe, alguém corrigirá estas omissões e a de tantos outros cidadãos eméritos.