Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Micos de minha infância"

 

Na minha mais tenra Itápolis, na época que eu curtia os encantos inesquecíveis da infância, o cavalo e toda sua espécie: égua, burro, mula, eram muito importantes na vida das pessoas, no campo nem se fala, mas na cidade também. O cavalo era tão presente, no transporte das pessoas, na tração de charretes, troles, semi-troles, carroças, arados, moendas, até nos carros fúnebres, por isso os comerciantes mandavam chumbar argolas no meio fio ou então mandavam instalar  pequenas barras de madeira, para que os fregueses amarrassem seus animais.

As carroças que estes animais puxavam tinham um papel importantíssimo no transporte de sacaria, de lenha, de pequenas mudanças, ainda mais que o uso do carro de boi começou a perder força a partir de meados dos anos quarenta.

O maior amigo de meu pai, Sr. Chico Torre era carroceiro e quando seus cavalos não estavam puxando a carroça, serviam de transporte para quem precisasse na casa dele.

Os filhos homens, até os meninos Nestor e Tavinho, eram acostumados a montar a cavalo e sair trotando pelas ruas da cidade. E num destes passeios o Tavinho resolveu passar lá em casa. Já era noite, ele apeou do cavalo e entrou no bate-papo da calçada. De repente olhou pra mim e perguntou: “Você já andou a cavalo?”

Eu respondi que não. Ele então se animou: “Então, tá na hora de aprender! Esse cavalo é bem mansinho, pode montar nele que eu ensino você!”

Eu olhei para os circunstantes, vi olhares de encorajamento, como que dissessem “Vai, monta!” Topei.

Estávamos eu e o Tavinho com nove, dez anos, por aí. Ele me ajudou e logo me vi no lombo do cavalo. Deu uma voltinha comigo até a esquina do Posto Esso, do Trevisan, enquanto me ensinava a manejar a rédea. Assim que cheguei em frente da minha casa, o Tavinho deu um tapa na anca do animal e ele foi trotando, comigo em cima, pela Francisco Porto, na direção da casa do Sr. Antônio Rosa.

Quadro da casa da chácara do Sr. Chico Torre

Eu tencionava andar um pouco só, mas não sabia virar nas esquinas, nem brecar o bicho. O cavalinho ia firme no seu passo, quando acabou a minha rua, virou à esquerda pela Rua Boiadeira e sabe onde foi parar? Na chácara do Sr. Chico Torre, quer dizer, na casa dele, do cavalo.

Os que estavam em casa deviam estar todos dormindo, o cavalo já estava pastando, com arreio e tudo e me sobrou voltar a pé. O Tavinho já não estava lá, tinha ido atrás de mim. Ele sabia no que aquilo ia dar, tanto que não voltou mais.

De outra feita eu fui à casa de minha tia Loreta, ali no meio do quarteirão da Av. Valentim Gentil, entre as Ruas Bernardino de Campos e Floriano Peixoto, perto da casa do Chico Sene.

Devia ser umas 9 e meia da manhã e só encontrei meu primo Joãozinho, que a tia chamava de Jonjoca e a Leontina, empregada de vários anos da família. Tia Loreta estava no Ginásio, onde lecionava Química e o tio João estava na “Pernambucanas”, onde era gerente.

Ao ver-me, Leontina, moça de uns 20 anos de idade, cabelos pretos e longos, presos por uma presilha, olhou pra mim e perguntou: “Orestes, você já matou frango?” Eu nunca tinha matado, mas muito interessado em bancar o sabidão, disse que sim. A Leontina deu um suspiro de alívio e foi dizendo: “Que sorte! A sua tia mandou eu pegar um frango, matar, depenar e fazer pro almoço. Mas eu sou crente, sou da Congregação Cristã e crente não destronca frango, crente corta o pescoço dele!”

Geraldo Hauers, o querido "Baianinho" que adotou o nome artístico de Geraldo Alves

Eu já estava percebendo onde tinha me metido, por isso disse: “Então corta o pescoço dele!”  “Eu não tenho coragem”, rebateu a moça.  Pegou uma faca enorme da gaveta, me entregou e decidiu: “Eu seguro o frango e você corta o pescoço dele. Não adiantou dizer pra ela que minha mãe destroncava o frango, ela dizia “É pecado, não pode!”

Ela segurou a pobre ave na beirada do canto da mesa, deixando o pescoço no jeito de cortar. E lá fui eu com aquela faca enorme! “Paff”, nada, a faca era completamente cega. Fiz umas dez tentativas sem sucesso, o frango esperneava, coitado, quando entrou o tio João. Viu aquilo e entendeu o que estávamos tentando fazer, tomou o frango de nós dois, deu um nó no judiado pescoço do bicho, que bateu as asas e desfaleceu. Tive uns cinco pesadelos com aquele frango.

Eu era tido como bom aluno no terceiro ano do Grupo Escolar. Falava muito, levava muitos coques da Isabel Vessoni, minha professora e vizinha, mas tirava boas notas. Por isso a Isabel foi lá em casa e disse pra minha mãe: “Bebé, vamos   ter uma comemoração muito importante lá no Grupo e eu quero que o Orestinho apresente uma poesia. Como você tem muitos livros, escolha uma bem conhecida e me ajude  a prepará-lo pra fazer bonito, hem!” Dia seguinte minha mãe chamou a Isabel e mostrou um poema de Olavo Bilac, cujo nome não me vem à mente nem a pau. E começaram os treinamentos, durante parte do recreio.

Eu vi que muitos alunos iam participar e foi na sala dos ensaios que eu conheci o pequenino Elio Renesto, que acabou virando um de meus melhores amigos pela vida a fora. Foram dois longos meses de ensaios, onde não faltaram os coques e os puxões de orelha. Até que chegou o grande dia. O ato comemorativo foi no pátio interno do Grupo. E tudo corria bem até quando chegou minha vez.

Fui recebido com palmas, estufei o peito, vi que todos me olhavam e vociferei: “De Olavo la c....(notaram o acento no Bí?).

Uma gargalhada explodiu e, para meu desconforto, o menino mais gozador do Grupo, o Geraldo Hauers, o Baianinho, estava na primeira fileira. A vida inteira, toda vez que nos encontrávamos, ele dizia: “Como está o Olavo Bílac?”, com  acento agudo no Bí.