Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"De lembranças também se vive"

 

Pela simples razão de ter que pensar no meu passado em Itápolis, para escolher que tema vou abordar a cada semana, de tempos para cá tenho sonhado, cada vez mais amiúde, com a minha velha e querida terrinha. São sonhos mais demorados que os normais, mais nítidos nas imagens e nos sons, cada vez mais próximos do real.

Eu amo a vida, acho que viver tão longo tempo não enjoa, ao contrário aumenta o apego à vida. E a natureza é tão pródiga em criar mecanismos de auto defesa que, na velhice, a gente substitui os interesses perdidos, a disposição para curtir a vida diminuída, o vigor fragilizado, os sentidos cansados, pelo milagre do resgate. O idoso vai, pouco a pouco, resgatando imagens que estavam embaciadas, reouvindo vozes que estavam mudas,  reencontrando pessoas que haviam caído no seu esquecimento e, assim, recuperando um mundo que parecia sepulto.

Voltando aos meus sonhos, neles reencontrei amigos de infância com quem brinquei e que, de tantas alegrias juntos, haviam se tornado parte indispensável de meus dias de criança.

Com o passar do tempo, esses seres tão amados, foram se evaporando pela ação do tempo e da distância e pareciam não terem existido.

Eu era muito novinho, uns três ou quatro anos de idade, quando, vez por outra, aparecia em minha casa um médico, de sobrenome francês, Dr. Gélas (a pronúncia certa deste nome é geláss, com o s bem carregado). Não sei o que ele vinha fazer em Itápolis, sei que ele vinha em minha casa para combinar pescaria no Ribeirão dos Porcos com meu pai. Com ele vinha toda vez um menininho de nome Jean-Pierre (pronuncie janpiérr), que me puxava pela mão e ia me dizendo “Vamos brincar?”.

A passagem daquela criatura, que por uma semana vinha todos os dias brincar comigo, fez-me conhecer, por vez primeiro, o que é ter um amigo. O tempo passou, o Dr. Gélas nunca mais apareceu e o Jean-Pierre virou fumaça. Voltou em sonho, igualzinho quando aquela criança, com sua roupa estilo europeu, calças três quartos, com suspensórios, blusas com mangas compridas, botinhas tres quartos nos pés e uma boina de cor alegre cobrindo a cabeleira ruiva.

Fachada do Banco Comercial do Estado de São Paulo, hoje Banco Itaú, na esquina da Av. Pres. Valentim Gentil com a Rua Odilon Neg~rão

Poucos dias depois, sonhei  que apostava corrida com o Aluísio, filho de um gerente do Banco Comercial, que funcionava em um prédio antigo, na esquina em que está hoje a agência do Itaú.  Não me voltou o nome do pai dele, mas o Aluísio, meu amiguinho por uns dois anos, voltou inteiro, com seu cabelo liso, repartido ao meio, seu rosto corado com algumas sardas, exibindo sempre aquele sorriso que o tornava simpático e querido por toda vizinhança.

Aluísio morava numa das casas do Sr. Lutaif, ali na Bernardino de Campos, no caminho da casa do meu Nono. O pai foi transferido, o caminhão de mudanças esvaziou aquela casa e também boa parte da minha alegria de menino.

Sonhei com o Aluísio duas vezes, sempre em cenas de alegria e brincadeiras. Na semana passada sonhei com um amigo de puberdade, aquela idade em que a gente está passando de criança para adolescente.

Foi o sonho mais longo desses que vêm acontecendo. Éramos meninos já crescidos, uns 12 anos, ainda de calças curtas, porque a calça comprida só surgia quando atingíamos os 14 anos. O novo amigo, dos anos 43. 44, chamava-se Leo e dele eu me lembrei do sobrenome: Leo Maniero.

Sua família viera de Jaú e fora morar noutra casa do Sr. Lutaif, ali vizinho nosso, na esquina da Av. Francisco Porto com a Bernardino de Campos. Vieram para estarem mais perto da Dª Noêmia, esposa do Sr. Luizinho Maradei, guarda-livros dos Armentano, tanto do armazém, como do Posto Atlantic.

O Leo era um menino esguio, pele branco-pálida, cabelos lisos e seu jeitão era de quase adulto, era cheio de ideias, de planos para o futuro, sonhava ser engenheiro, desenhava muito bem e já arriscava alguns projetos de casas e de prédios de cinema, dizia que um dia iria construir um grande cinema.

O forte de nossa amizade não eram os brinquedos, mas os longos papos sentados nas guias das sarjetas de nosso quarteirão. Minha admiração por aquele jovenzinho sonhador era tão profunda que parecia que nossa amizade seria eterna.

Dª Noêmia morreu, prematuramente, de câncer e a família do Leo, que tinha uma irmã chamada Magda e que eu achava linda, juntou a mudança e partiu de volta para Jaú, levando junto os projetos daquele engenheiro mirim.

A beleza da fachada do Hospital de Misericórdia e seu jardim era um verdadeiro Cartão Postal

E os sonhos têm-me trazido de volta muitas casas que já foram demolidas, o velho formato do Jardim (Praça Pedro Alves de Oliveira), a beleza por todos decantada do nosso velho Hospital de Misericórdia, que virou até cartão postal, com uma foto que mostrava o prédio, estilo colonial e seu jardim esplendoroso.

Fachada do Sobradinho Dª Chiquinha demolido na Década de 1970

Havia um moço muito conhecido, trabalhava no cartório do Basílio Nino, debaixo do sobrado da Dª Chiquinha, que era bonitão e elegante no seu terno branco e costumava carregar no bolso este cartão postal do Hospital para mostrar para as namoradas que conquistava nas cidades vizinhas; mostrava-lhes e dizia: “Esta é minha casa de campo lá em Itápolis”.

08 de janeiro de l949, em Itápolis - Oeste 6 X 4 Ipiranga de Catanduva

          Da esquerda para a direita:, em pé: Carlos Dultra, Neu Miranda, Anuar, Élio José La Laina, Milanês, Pelota e Oacyr Antonio Ellero (pé de pato)
          Agachados: Irani Juliano, Luiz dos Santos (Careta), Dema, Didi e Rubinho

Obs.: Anuar, Milanês, Pelota, Dema, Didi e Rubinho eram do CAT de Taquariting

O último sonho e foi essa noite, me trouxe de volta dois de meus melhores e mais queridos amigos de juventude, que o tempo e a distância só conservou no fundo da memória. Sonhei que estava perdido, numa rua de Bauru e fui socorrido por um antigo amigo, que morou na minha casa, o Walter Piglialarme (pronuncie Pilhialarme, pois em italiano o grupo consonantal gl equivale ao nosso lh).

A amizade não era só minha com o Walter, era da minha família com a família dele. O sonho evoluiu e nos transportou de volta para a estrada de Taquaritinga, onde por várias vezes fizemos longas caminhadas a pé, voltando da fazenda onde moravam o Jacintho e a Zizinha, minha irmã, bem pertinho de Nova América.

 

Acho que pelo fato de nosso encontro, no sonho, ter sido em Bauru, apareceu ali um de meus mais queridos amigos, o Homero Juliano. O Homero entrou no sonho no lugar do Walter, que desaparece; ele pertencia a uma família que foi muito popular e querida, na nossa terra. Eles moravam numa casa vizinha do Sr. Adelino Pereira, ali na Av. 7 de Setembro, esquina com a Av. Eduardo Amaral Lyra.

Era uma família bem grande que tinha um grande jogador do Oeste, o Irani, que fez parte de um dos times mais consagrados de nosso querido Rubrão. Foram-se embora para Bauru, nunca mais tive notícias.

Essas verdadeiras ressurreições em meus sonhos, me alimentam com vigor o desejo de viver, porque de lembranças também se vive e muito bem, quero que saibam.