Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Famílias quase esquecidas, outras nem o quase"

 

Na minha mais tenra Itápolis, ainda na minha idade pré-escolar, quando as casas da minha vizinhança ainda não haviam sido reformadas, modernizadas, algumas até demolidas para dar lugar a uma nova construção, conheci famílias que por ali viviam e que pouco mais   tarde se mudaram da cidade, ainda foram lembradas durante algum tempo e depois foram caindo no esquecimento.

Eram famílias que, algumas, se formaram na nossa cidade, viram seus filhos crescerem, se formarem, alguns até se casarem, que depois partiram, deixando muitos amigos, sendo por bom tempo lembrados com saudades, mas o tempo que é parceiro do esquecimento, tanto nos afasta das lembranças negativas, sofridas, como também apaga as lembranças mais agradáveis; o tempo é o tempo, indomável, infinito, irrefreável.

Quem de vocês poderá se lembrar da família Cápia? O Sr. Antonio Cápia, guarda livros, sempre elegantemente vestido e com a cabeça coberta por um chapéu de aba estreita, azulado, quando saía de sua casa, situada na Av. Francisco Porto, quase chegando na esquina da Rua Bernardino de Campos, tinha primeiro que se despedir de um por um de seus filhos, cinco crianças que iam dos 4 até os 14 anos de idade. O Sr, Cápia recebia abraços e beijos em série e descia a calçada de lá de minha casa, olhando para trás e abanando a mão para seus filhos, que só entravam depois que ele virasse lá em cima, na esquina da Rua Padre Tarallo.

Assisti esse espetáculo de amor filial quase todos os dias. Dª Virgínia, a mãe, sempre muito ocupada, cansava de chamá-los de volta pra casa. A casa deles era afastada da calçada e protegida por um murinho baixo, por cima do qual dava pra ver o jardinzinho bem cuidado, repleto de flores miúdas de todos os matizes.

Vizinhos do Sr. Cápia, já descendo a Francisco Porto no sentido centro, moravam os moços da família Cruz, o Osmar e o Valdemar. Havia também duas moças, a Odila e outra, mais nova, cujo nome não consigo lembrar agora.

Os Cruz tinham parentes na cidade, era a família de Dª Ceci, professora do nosso antigo Grupo Escolar Antonio Morais Barros. Dª Ceci era casada com o Sr. Dionísio, que tinha uma lenhadora, ali nos baixos da Rua Floriano Peixoto, justo na passagem do córrego que corre pela Vila Nova e ao lado da mais frondosa paineira que já vi em toda minha vida. Eles tinham um casal de filhos, o Rui e a Alice. 

Lenhadora era uma forma de comércio próprio da era anterior ao advento do fogão a gás. O lenheiro comprava os troncos, galhos graúdos e tocos remanescentes das queimadas ou mesmo das derrubadas de matas das redondezas, aparava esta madeira toda, cortava-a em lascas uniformes, que passavam a ser chamadas de lenha. Como todas as casas da cidade usavam o fogão à lenha, fosse esse o de tijolos, fosse o industrializado, conhecido como “fogão econômico”, a lenha era artigo de primeira necessidade. As donas de casa encomendavam tantos metros de lenha, conforme sua média de consumo, o lenheiro carregava a carroça e descarregava os paus de lenha na calçada, geralmente próximo ao portão de serviços e a tarefa de recolher esta lenha toda era, na maior parte das casas, encargo da criançada.

Os Cruz da Francisco Porto mudaram-se para São Paulo, no início dos anos 40. O Valdemar tinha vocação para as lidas teatrais e foi em busca do campo propício para desenvolver seu projeto de vida. Os moços da família Cruz eram muito educados, simpáticos e por isso mesmo, muito queridos na cidade, sua partida deixou muita saudade.

Valdemar logo virou notícia nas páginas dedicadas ao teatro, tornou-se diretor de conhecidas companhias e foi seguido pelo seu irmão Osmar, que também virou um diretor de teatro de renome. Dois anos depois de sua partida, a família Cruz foi seguida pela família da Professora Ceci, a lenhadora passou para o seu empregado mais experiente, o Sr. Lazinho, que se casou mais tarde com a Dª Amália,  filha mais velha do fazendeiro Samuel Delmuth. Lembro-me que o primeiro filho do Sr, Lazinho recebeu o nome de Dionísio, provavelmente como homenagem ao antigo patrão e amigo   de seu pai e o segundo filho recebeu o nome de Lucilo.

Outra família da qual ninguém mais fala é a do dentista, Dr. Parreira. Eles viveram em nossa cidade nos fins dos anos 30 e início dos anos 40. A casa deles situava-se na Rua Padre Tarallo, à direita da descida para antiga saída para Ibitinga, vizinhos do maestro Raphael Mercaldi e da lendária Dª Mazé. Lembro-me de ver o Sr. Parreira atravessando o Largo da Matriz, quando eu ia indo para a escolinha da Dª Mazé, alí na esquina da Avenida dos Amaros com a Rua Barão do Rio Branco. Era um homem bem alto, vestia-se sempre de terno cinza, usava óculos de armação transparente amarelada. Guardei na memória aquela figura, que pelo que ouvia tanto falar no nome, devia ser bem popular entre os itapolitanos.

Quando me atenho a memorizar minha terra natal, quanta gente me volta à mente. Vejo-os como se estivessem alí, na minha frente. Será que alguém se lembra do dentista Dr. Orlando Tremocildi? Seu gabinete era na casa que ele morava, um chalé bonitinho ali na Rua Barão do Rio Branco, em frente à casa do Cleante Semeghini e da Dª Adelina Lalaina, entre a Campos Salles e a antiga Av. Carlos Gomes, que depois virou Eduardo Amaral Lyra.

Na mesma casa morou outro dentista, de nome Dr. Moacir, que tinha uma filha chamada Marlene e era minha coleguinha na Escola da Dª Mazé. E por falar em dentista, será que alguém se lembra da Dr. Ponciano? Ele tinha seu gabinete no prédio da esquina da Av. XV de Novembro (hoje Valentim Gentil) com a Rua 13 de Maio (hoje Ricieri A. Vessoni), bem em frente a casa da família Lutaif. Para o leitor fazer uma ideia do tipo do Dr. Ponciano, veja se se lembra da figura do ex-presidente Jânio Quadros, com os cabelos grisalhos. O Dr. Ponciano era remanescente de uma geração antiquada de dentistas, por isso era o mais barateiro da cidade. O tenebroso motorzinho que amedrontava os pacientes, ali era acionado e funcionava na base do  pedal, daí você imagina como demorava para perfurar um dente. Eu passei muitas vezes, eu e meus irmãos mais velhos, por esta câmara de tortura.

Há muita gente que viveu na antiga Itápolis, dos anos 20, 30, 40 e que hoje desapareceram do cenário sem deixar vestígio. Será que alguém se lembra do excelente oftalmologista, Dr. Malavazzi, que atendia numa casa de arquitetura extravagante para a época. Essa casa existe até hoje e conserva seu aspecto de construção sólida; ela fica entre o sobrado em ruínas da esquina da Odilon Negrão com a Campos Sales e a antiga casa do bancário João De Lucca, um pouco acima da casa da Dª Faridi, mãe do Rubinho Guzzo.  Em frente à casa do João De Lucca, onde bem antigamente morou a família do Walson Gardelin, morava e atendia outro dentista, o Dr, Regis, que clinicou anteriormente em Tapinas e Monjolinho, lembram-se dele? Alguém se lembra do Sr. Basílio Nino? Merece um doce aquele que se lembrou que ele foi um dos primeiros donos do Cartório que funcionava no térreo do famoso sobrado da Dª Chiquinha, ali no Largo da Matriz.

Toda essa gente que eu citei tinha família, pessoas que trabalharam, estudaram, frequentaram o cinema, o clube recreativo, passeou nos nossos jardins, rezou na nossa igreja, orou nos nossos templo, viveu intensamente como todo bom itapolitano. É assim a vida das cidades, gente que vem, que fica ou que vai, gente que finca raízes, gente que não deixa nem rastro.