Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Dignidade não é privilégio de nenhuma classe social"

Nessa vida a gente encontra todo tipo de gente, assim como toda espécie de coisas, todo tipo de situação, de surpresa, de decepção, de emoção, de desencanto. Mas são os tipos especiais de pessoas que mais se fixam em nossa memória. São os “tipos inesquecíveis” de que fala a “Seleções”. Nos meus passados 80 anos tenho vários personagens inesquecíveis, seja pela grandeza de alma, seja pelas tiradas inteligentes, seja por qualquer traço marcante.

Da minha mais tenra Itápolis ficaram grudados na memória a figura espirituosa do Zezé Celli, aquele sátiro barbeiro que tinha a palavra exata para cada fato inusitado que presenciava, o simpático Professor Tamerick, que até para expulsar um aluno da classe, fazia-o com criatividade e tranquilidade. Em vez de dizer “o senhor está expulso!”, “vai pra fora!”, “vai já pra diretoria”, inventou essa:  “Você aí, vai abrir a porta!  Agora fecha!”.

- “Pronto, professor!”

- “Não! Mandei fechar pelo lado de fora!”. E o aluno entendia que estava expulso.

Quando entrei na USP, no primeiro dia de aula, meio perdido,  encontrei um homem grandalhão, todo de terno escuro e engravatado, cujo sorriso espontâneo me encorajou a lhe pedir ajuda. Caipirão que eu era, recém chegado à Capital, não sabia nem de que lado eram as salas de aula. E o Bronze me ensinou, na verdade me guiou pelas escadarias e corredores e, desde aquele dia, abria-me aquele sorriso cada vez que nos cruzávamos. José Américo Bronze era o nome do meu cicerone, respondia pela Seção de Publicações da Faculdade. No começo pensei que Bronze era seu apelido, pois tinha a pele bronzeada. Mas não, era seu nome de família. Era muito popular entre os professores e os alunos e muito eficiente no serviço. Uma noite, tomando um cafezinho no Bar dos Estudantes, lá na esquina da Rua Maria Antônia com a Rua Dr. Vila Nova, ouvi sem querer uma discussão entre o Bronze e um tal de Zé Gabriel, auxiliar de serviços da Diretoria. O Zé dizia convicto:

O sangue flui de modo contínuo e em uma única direção dentro das cavidades cardíacas, não produzindo nenhum barulho. O sopro cardíaco é um som que pode ser escutado quando há interferência neste fluxo, havendo turbulência do sangue dentro do coração. O sopro geralmente surge por problemas nas válvulas cardíacas, mas em crianças e em pessoas jovens saudáveis ele pode ser um achado inocente, sem nenhum significado clínico.
(fonte:http://www.mdsaude.com/2010/04/sopro-coracao-sopro-cardiaco.html)

- “Você foi muito burro, Bronze! Muito burro mesmo! Por que foi contar pro médico que tinha um sopro no coração? Só mesmo um burro como você!”.       

 

Estranhei aquilo, não entendi por que seria burrice dizer ao médico que tem problema cardíaco?  E isso me fez aproximar-me deles. O Bronze correu me apresentar ao colega Zé Gabriel e, percebendo que eu ouvira a conversa, passou a me por ao par: - “O Zé diz que eu sou burro, porque quando eu fui passar pela consulta, eu contei  pro médico que eu tinha um sopro no coração! Você não acha que o médico tinha que saber?”.

Ouvindo aquilo o tal Zé atalhou: “Conta direito, Bronze. Conta que você não estava passando numa consulta, você estava passando por uma perícia para ser nomeado diretor da Seção de Publicações, que está vaga desde que o Higino morreu. Conta pra ele que o médico já tinha lhe considerado apto, já tinha dispensado você, que você já tinha saído e caminhado dois quarteirões, quando se lembrou,  voltou e falou pro médico: “Doutor, eu esqueci de dizer pro senhor que eu tenho um sopro no coração!”. E o Bronze, com uma ingenuidade do seu tamanho, virou-se pra mim e perguntou:

- “Você não acha que do doutor tinha que saber?”.

- “É burro mesmo, repetia o Zé, perdeu a nomeação, foi reprovado na perícia e até hoje é escriturário, faz o trabalho de diretor e recebe como simples escriturário. Pode?”. O Bronze deu um sorriso e arrematou:

- “Posso ser burro, mas sou honesto!”.

Meu querido amigo Bronze trabalhou na função de diretor, recebendo como escriturário até morrer, aos 56 anos de idade, do coração. Mas nunca perdeu aquele sorriso.

Em São José do Rio Preto, quando eu estava preso, com mais de quatrocentos cidadãos honestos e decentes, por ocasião do golpe militar de 1964, acusados de subversão e de militância comunista, sendo que dos 36 comunistas, de fato, que havia em toda a região, nenhum foi preso, porque praticaram a indecência da “delação premiada”, pois é,  num daqueles 92 dias, estávamos conversando num dos quartos onde ficávamos, quando surgiu na porta o delegado, Dr. José Domingos, encarregado de tomar nossos depoimentos. Cumprimentou a todos e dirigiu-se ao pedreiro Pedro Plácido que, alheio ao bate papo estava num canto lendo um livro.

Pedro Plácido, é bom que se diga, era um pernambucano pacato, plácido como o próprio sobrenome, era membro do Sindicato da Construção Civil. Pedro tinha mulher e uma filhinha, família que dependia de seu trabalho. Conheci-o ali e pude ouvir dele que nem sabia o que era comunismo, que gostava de ir ao Sindicato porque lá tinha sala de jogos e ele gostava de um joguinho de damas. E foi a este pedreiro que o delegado se dirigiu com certo objetivo. Agora vejam o diálogo:

- Olha Pedro, eu sei que você é um trabalhador honesto, que tem uma família que depende do seu trabalho, estou vendo o senhor aqui preso, sem poder trabalhar, há quase dois meses. Pensando na sua situação e na de sua família, estou disposto a lhe devolver a liberdade. Hoje à noite vou chamá-lo pra gente conversar. E amanhã o senhor poderá ser solto. Espero que, em contrapartida, o senhor colabore com a Polícia, ouviu bem?

O Pedro largou o livro, foi-se virando lentamente para o lado do delegado e, com a placidez que Deus lhe deu, com voz pausada e segura respondeu:

- Doutor José, é esse seu nome, não? Eu ouvi tudo o que o senhor acaba de me falar e  entendi perfeitamente o que o senhor quis dizer. Não preciso nem pensar para lhe pedir uma coisa: DEIXA EU MOFAR NESTA PRISÃO, DOUTOR, MAS RESPEITA A MINHA DIGNIDADE! MINHA MULHER E MINHA FILHA  VÃO ENTENDER ESTE MEU GESTO, NÃO PRECISA O SENHOR SE PREOCUPAR COM ELES.

Até hoje, 49 anos depois, ao repetir estas palavras que eu decorei, sinto meus olhos marejarem, como marejaram os olhos de todos que estavam naquele recinto.