Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Diário de Itápolis - Outros Tempos!

Falar corretamente, estranhar erros de concordância, de conjugação verbal e outros cuidados com a nossa rica língua portuguesa do Brasil não eram a única marca da cultura popular de nossa cidade, nos anos que me proponho a resgatar, quais sejam, anos 30, 40 e primórdios dos anos 50. É necessário registrar que o itapolitano, como sabíamos também a maioria dos brasileiros, tínhamos orgulho de nossa língua pátria. O português era enaltecido pela sua riqueza vocabular, pela sua beleza sonora e pelo fato de ter dominado todo o nosso território nacional, sem criar bolsões de linguajar regional, sem deixar que se vislumbrasse o nascimento de dialetos. O português, o povo (e, quando digo povo, é povo mesmo, é povão), o povo identificava-o como a língua da unidade nacional. Muitos se orgulhavam de que fôssemos exclusivos na palavra “saudade”, única no universo lingüístico, que expressa, num só vocábulo, este sentimento  que é uma mescla de nostalgia,  tristeza pela distância, uma espécie de luto pela ausência.

O brasileiro, e o itapolitano particularmente, tinha gosto pela língua bem falada e bem escrita também. O que era comum você encontrar  nas casas, entre livros, borracha, pena de caneta, mata-borrão, era o caderno de caligrafia. As pessoas gostavam de calibrar suas letras, torná-las claras, bem legíveis e com estética. Caligrafia, para os mais jovens, que talvez a desconheçam, é a arte de escrever bem com a mão, a arte do manuscrito, hoje tão em desuso. Eu mesmo me orgulhava ao ver a caligrafia da minha mãe e da minha irmã Zizinha. As cartas delas, que me chegavam em São Paulo,  quando estudante, eram dignas de se mostrarem aos colegas de classe, aos companheiros de pensão, tão perfeitas e bonitas eram suas letras.

 É preciso também que se diga que a matemática não era tão reverenciada como o português, a maioria das pessoas se distanciavam dos complicados cálculos, dos intrigantes teoremas. Mas a aritmética, ante-sala da matemática, esta não amedrontava ninguém. Era difícil encontrar alguém que não dominasse a famosa tabuada, método que garantia o domínio das 4 operações. Somava-se, subtraía-se, dividia-se, multiplicava-se de cabeça. A famigerada maquininha de calcular ainda não tinha feito sua entrada triunfal nos hábitos mentais do povo. E quem viveu nesta época, você pode testar e verá confirmado, calcula muito bem sem a bendita.  

Outro traço cultural da gente daqueles tempos, era o ecletismo. As pessoas espalhavam seu gosto artístico por todas as artes, até numa simples arrumação da casa, notava-se o gosto pelo equilíbrio, harmonia, visão estética que revelavam gosto pela pintura, pela escultura, pela gravura e outros gêneros do bom gosto plástico. Na música então abria-se um amplo leque de opções para a curtição das pessoas. Todos os gêneros musicais eram prestigiados, desde a moda de viola, até os clássicos. É claro que os repertórios variavam conforme o gosto pessoal, mas todos curtiam de tudo um pouco. Havia paixão pela música brasileira, as valsinhas, as mazurcas, as polcas, as serestas, o samba, o samba-canção, as modinhas, mas também eram bem recebidos os tangos argentinos, os boleros mexicanos, as cançonetas italianas, a canção francesa, o fox americano. Havia universalidade de gosto, sem perder de vista a nossa arte nacional de fazer música. Isto tudo se refletia na programação do Serviço de Alto-falantes e na Rádio Difusora,  o ouvinte tinha uma enorme gama de programas musicais.

A arte dramática, por sua vez, se fazia presente nas novelas do rádio, nas encenações de peças teatrais pelo Circo. Quando um circo chegava à cidade, todos sabiam que ia haver teatro. E logo pelas esquinas surgiam os cartazes negros, escritos a giz, anunciando: “Hoje, no Circo Tal, a peça de Joracy Camargo, “E o céu uniu dois corações”, ou então, ... escrito por Vicente Celestino, o drama “O Ébrio”. E a lona quase vinha abaixo, de tanta gente, nas cadeiras e na arquibancada.  

 Eram outros tempos, outros costumes eu sei. Comparada à vida de hoje, a vida de então era um mundo de espontaneidade cultural, sem imposição de gravadoras e da Mídia. E neste mundo respirávamos  uma certa ingenuidade e muito romantismo.