Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"A língua, sua prima, a linguagem e seu primo o linguajar"

Na minha mais tenra Itápolis, nos meus primórdios de vida escolar, nossa cidade ainda apresentava letreiros e placas escritas à moda ortográfica de antes da reforma de 1931. Aprendi a ler na Escolinha da Dona Mazé e , como toda criança que começa a ler, eu parava diante das lojas, armazéns, máquinas de arroz, de café, de algodão e ficava soletrando os dizeres das placas e dos letreiros. E aí começavam as confusões que me fundiam a cuca! Numa parede eu lia Farmácia Mucari, chegava numa outra rua, parava e lia Pharmácia Mendonça. Outro dia, indo lá para os lados da Vila Nova, via na parede de uma construção barulhenta o letreiro “Máquina de Arroz de Octávio Próspero”, mas descendo a Florêncio Terra, na esquina da 13 de maio (Ricieri A. Vessoni) topava com o letreiro “Machina de Arroz Lucato. Afinal de contas, é Farmácia ou é Pharmácia, é Máquina ou é Machina? O pai do meu colega de escola e amigo, Henrique Zabini chamava-se “sêo” Arquimedes, o nome dele escrito era Archimedes. Tínhamos a família Francischetti, que se pronunciava francisketi.  Os quadros de formatura do nosso ginásio antigo ostentavam em letras em relevo: PROFESSOR DE PHYSICA, PROFESSOR DE CHÍMICA, mas já se escrevia FÍSICA, QUÍMICA. De repente, no livro de Geografia se falando de constelações, aparecia uma estrela chamada “Alpha”, que se lia “alfa”  Aquilo dava um nó na cabeça da gente.

Tudo isto porque tinham feito uma reforma ortográfica, isto é, resolveram mudar a maneira de grafar as palavras. Sabem quantas reformas ortográficas o Brasil já fez, desde o início do século XX? Simplesmente 10 reformas, quer dizer, 10 vezes tivemos que reaprender a grafar as palavras na nossa língua: em 1911, 1931, 1945, 1971, 1973, 1975, 1986, 1998 e 2008. É claro que nem todas foram reformas significativas, com amplas mudanças. As mais importantes foram a de 1911, a de 1931, a de 1943, a de 1973, a de 1086 e esta mais recente, de 2008. As outras foram fruto de acordos bilaterais Brasil-Portugal, fazendo pequenos ajustes na nossa ortografia. Mas, 10 vezes tivemos que aprender a ajustar nosso modo de escrever.

Até 1931, um ano antes de eu nascer, usavam-se letras geminadas cc, ff, ll, mm, nn, RR, SS, tt.  Deles todos só sobraram o RR e o SS. Mas antes se escrevia  “Ella”, “effeito”, “emma”, “Anna”, “Odette”.  O k, o y e o w continuavam em uso, embora já tivessem sido excluídos do alfabeto.  E as pessoas achavam bonitas estas letras estranhas às línguas latinas. Nomes como Yvone, Yvette, Yolanda, Jacy, Aracy, Kátia, Korina, Érika, Walter, Waldemar, Wolney, Wônia, eram comuns e os donos destes nomes faziam questão de avisar: “é com W, viu?  É com K, viu? “ E tinha também gente que assinava Aphonso, Ophélia, Achiles, Tínhamos os architetos, os archeólogos, os psychólogos, os philósofos, as photografias, as orchídeas, o chromo, o chloro e o thermômetro.

Geralmente as reformas ortográficas não são bem recebidas pelas pessoas. Eu mesmo tenho uma certa resistência a elas. É que a gente se acomoda num modo de escrever, com a plástica da escrita e se aborrece por ter que alterá-la. Mas, como professor de língua francesa tenho que dizer que essas reformas são necessárias, são bem vindas porque com elas se faz a escrita acompanhar a evolução da fala. Vejam o que aconteceu com as línguas inglesa e francesa: passaram-se 4 séculos e meio sem reformularem a escrita (do século XVI aos meados do século XIX) e o que aconteceu? Cavou-se um abismo entre a linguagem falada e a linguagem escrita, o que torna inviável uma adequação total entre as duas, sob pena de todos os povos de língua francesa e de língua inglesa terem que ser re-alfabetizados.  Por isto que é penoso aprender a falar estas duas línguas que estou usando como exemplos. Então veja só: no francês você fala “bô” (belo), mas escreve “beau”, fala-se “mêzôn” (casa), mas se escreve “maison”, fala-se “uazô” (pássaro), mas se escreve “oiseau” Viu que diferença? No inglês é a mesma coisa, você fala “ái” (eu), mas escreve “I”, você fala “fut”(pé), mas escreve “foot”. Se eles tivessem feito periódicas reformas ortográficas conforme a fala do povo ia mudando, escreveriam do jeito que falam.

É claro que temos exemplos do fenômeno inverso: o povo falava “animar”, mas tinha que escrever “animal”; com a escolarização, com a influência dos meios de comunicação (rádio, cinema, TV) acabaram trocando “animar” por “animal”, “não faiz mar” por “não faz mal”. O nosso grande professor de português, o saudoso Aureliano Castelar de Franceschi, costumava dizer: “Se o povo nunca errasse, nunca as línguas evoluiriam e estaríamos falando o que? O latim? O grego? Os grunhidos e os urros do homem das cavernas?”

Apesar de falarmos a mesma língua que se falava em Itápolis dos anos 30, 40, não falamos mais a mesma linguagem. Um coisa é a língua que se escreve e que se aprende na escola, outra coisa é a linguagem falada, o linguajar do dia a dia! Este não tem dono, ninguém doma, nem a escola consegue regular. Este, ninguém segura!