Orestes Nigro
 

Histórias que não foram escritas

 

Diário de Itápolis - Lembranças II

Quando me ponho a relembrar meus tempos de Itápolis, quando me ponho a rever mentalmente cada rua, cada praça, cada esquina que percorria com total domínio, tocando, ainda criança, meu arquinho de metal pelas calçadas de pedra, depois, já rapazinho, pedalando a bicicleta do meu irmão Romeu, eu vejo que tudo ficou gravado na minha retina, tanto que voltam diante dos meus olhos em devaneio, cada casa, cada portão, cada flor daqueles jardins, como se ainda estivessem ali, imutáveis, eternos, imortais.

Quando minha mente passa pelo trecho da Rua José Trevisan, entre a Francisco Porto e a Valentim Gentil, surge diante de mim a simpática e despachada Dona Iole Cauduro, mulher do celeiro, mãe da Odisséia, da Onélia e do Toninho, fazendo a maior algazarra pra comprar as verduras do Sêo Manginelli. Dona Iole, que pertencia em solteira à família Furlan, era uma das figuras mais características da descendência italiana, falante com palavras, com gestos e com alarido, uma presença movida por incrível disposição, por inesquecível simpatia. Dona iole era palestrina, não era palmeirense, pois fazia pouco que a estupidez da guerra obrigara os palestrinos a trocar Palestra Itália por Sociedade Esportiva Palmeiras. Como também desapareceram as Casa Tóquio e Casa Alemã, de São Paulo. Que saudade da dona Iole!

Dez anos depois da extinção da Banda Musical Cruzeiro do Sul, ex-Corporação Musical "Victório Manoel II", diversos músicos remanescentes daquela Corporação Musical, com outros músicos novos, fundaram a Bandinha "Oriental", também conhecida como "Furiosa".

Idealizada por José Manoel da Rocha (Filho) e Armando Brunelli, a estréia da Bandinha deu-se no dia 14 de maio de 1958, na festa do Divino Espírito Santo, em benefício do Lar São José e construção da Capela de Santo Antonio.

A regência foi confiada ao musicista Joaquim Paes de Oliveira que participou, no período de 1935 a 1948, da Corporação Musical "Victório Manoel III", sob a regência do emérito maestro Raphael Mercaldi
Em pé, da esquerda para a direita: Thomaz Mercaldi, Leonardo Januzzi, Thomaz Jannuzzi, Otávio Tarquínio Orsi e Adelino Luíz da Silva.

Sentados, da esquerda para a direita: José Alves, Sebastião Januário, Joaquim Paes de Oliveira, Saulo Garcia e Primo Vessone.    Foto de 1962

Naqueles anos 30/40 o descendente de italianos, de árabes, de espanhóis, que em Itápolis hávia muitos, tinham pais italianos, mães espanholas, tios libaneses, padrinhos portugueses... a imigração ainda estava em curso, todos os meses chegavam levas de polenteiros, rabatachos, flamengos, como apelidávamos italianos, árabes, espanhóis. Então, quem era brasileiro, mas filho de imigrantes, mesclava seu linguajar falando um português entremeado de termos italianos, de expressões árabes, de interjeições espanholas. E dona Iole xingava em italiano, esbravejava na língua dos Furlan e quantas vezes eu a ouvi vociferando “Managgia La putana” quando o preço da verdura subia!

Itápolis, eu falo da minha mais tenra Itápolis, tinha sons que vinham da raiz da terra, das pedras de fogo de seu subsolo, misturados aos ecos da velha Europa, da secular Arábia. E nós, os descendentes aprendíamos a amar e a reproduzir a música que vinha destes lugares tão distantes. Era comum você ouvir as pessoas assoviando cançonetas napolitanas, fados portugueses, paso-dobles catalãos. A cidade se fazia sonora, cantante, internacional. Naquele tempo não havia só o “tumtumtumtum” monótono que se ouve hoje quando passa um carro tipo parque ambulante. A gente curtia todo tipo de música, desde a moda de viola, dos irmãos Fortuna, do Alvarenga e Ranchinho, até as melodias clássicas de Tchaikovsky, de Chopin. Tudo que fosse bom agradava nossos ouvidos ungidos pela sonoridade universal. Nosso Serviço de Alto-falantes, nossa Rádio Difusora, nossa Corporação Musical, a “furiosa”, como era chamada a Banda, todos tocavam tudo! Não havia esta redução a pó de traque que sofre hoje a música para a maioria dos brasileiros, que fica dando voltas sempre no mesmo lugar, saindo do pagode pra o sertanejo country, daí para o tumtumtum e nada mais.

É por isto é que é delicioso ficar viajando mentalmente pelas ruas, praças e esquinas da minha Itápolis universalista e fecunda no amor a tudo de bom que vem do mundo!