Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Legumes e Amigos de Infância

Quanto mais passa o tempo que vivemos, mais se aguçam as lembranças do passado e mais ainda se forem lembranças do passado mais remoto, aquele que brota lá da infância. Às vezes chego a me assustar com imagens, cenas que me vêm à mente, que eu sei que já as vivi, mas quando foi? ,  onde foi?, que lugar era aquele? E fico a matutar, a rebuscar na memória e, enquanto não localizo e identifico, não sossego.

 

Eu levei muitos anos da minha vida sem adquirir o hábito salutar de comer verduras e legumes, acho que na minha velha casa, na qual passei todos os anos da minha infância e juventude, se os comi, foi muito pouco. Certa vez, já bem longe da minha terra, no espaço e no tempo, vi-me, numa refeição na casa do meu professor de italiano, diante de uma enorme travessa de salada, rica em formatos e cores, parecia ser prato único, pois todos começaram a se servir. Eu não tive outro jeito, servi-me também, cuidando de não trazer para o prato a beterraba, que eu nunca tinha comido. Foi quando a dona da casa, Dona Otávia, me lembro bem, veio com uma espátula cheia da dita cuja e colocou no meu prato, dizendo: “Põe cor na sua comida, rapaz, os vegetais vermelhos são os mais ricos em nutrientes!” E eu tive que encarar a estranha desconhecida.

O que aconteceu então foi muito estranho: a cada pedaço de beterraba que eu mastigava, quando descia garganta a baixo, no exato momento em que passava pela laringe, vinha-me à mente uma cena muito familiar, muito antiga, era o quintal do vizinho da frente, de uma casa modesta onde morava o Sr. Tonani, e lá estávamos o Tico, a sua irmãzinha Tica e eu, brincando, A cena passava rápida, o tempo de engolir aquele pedaço de beterraba, mas era nítida, trazia-me de volta aquele quintal em que tantas vezes fui brincar, com riqueza de detalhes. Durante muito tempo, depois daquele almoço, que teve muita comida boa, por sinal, fiquei eu encafifado com aquele episódio. Por que será que só quando engolia a beterraba aquele cena me vinha? E era só com a beterraba!  Eu deduzi que havia uma relação ou com a cor ou com o gosto daquela “raiz tuberosa”, como diria o professor Meri Minhoto. 

 
“Melão de São Caetano”, cujas sementinhas vermelhas a gente gostava de comer

Comecei a provocar a volta daquela cena à lembrança e vi que a cerca, que separava aquele quintal do da Donana (Sinhana Baiana), era carregado daquela trepadeira “melão de São Caetano”, cujas sementinhas vermelhas a gente gostava de comer. Enquanto eu não consegui achar melão de São Caetano, já raro naqueles novos tempos, eu não sosseguei. Até que achei, apanhei depressa e mais depressa ainda pus na boca! Estava explicado!  Tinha gosto de beterraba!

Depois desta constatação nunca mais a beterraba que descia pela garganta me devolveu aquela  cena tão remota. Mas me fez reviver momentos felizes da infância, com aquele casal de amiguinhos, o Tico e a Tica, que um dia, antes de crescerem, foram-se embora de Itápolis pra nunca mais nos vermos.

Quantos amiguinhos e amiguinhas passaram por nossa infância e desapareceram nas andanças de seus pais!? Ponha-se você aí a matutar e vai se lembrar de muitos, pode apostar!

Ali vizinho, na casa de varanda que o Sr. Lutaif alugava, ali na esquina da Francisco Porto com a Bernardino de Campos, onde tem agora um prédio novo, todo envidraçado, em que funciona uma escola, morou tanta gente com crianças. Os de lembrança mais remota eram os da família do Sr. Gabriel feres e de Dona Maíba, uma penca; ali morou também o sargento Flávio Araújo, que tinha uma filhinha que era uma doçura, a Heleninha. Depois o Sargento Josias e sua penca todos com nomes iniciados com Z. O Zaluar, o Zenon, o Zander e o Zanderlei, Tinha também uma menina, só que esta não seguiu a regra do Z, chamava-se Neuza.O Zenon era o mais badalado de todos, porque era muito engraçado, parecia-se com o Stan Lauren, o Magro da dupla O Gordo e o Magro, de tanto sucesso na época! Ele era notável como imitador, com as caretas geniais que fazia e era tipo cinema mudo, fazia rir sem dizer uma palavra. No quintal de minha casa havia um abacateiro bem alto, onde eu subia quase todos os dias. Um dia eu estava sentado num galho, quando vi o Zenon varrendo o quintal, em frente da varanda. Assobiei pra ele, ele logo me viu. Cortei um pedaço de galho velho e comecei a apontar aquilo como se fosse um revólver. A cada tiro que eu simulava, o Zenon fazia cara e gestos de ferido e tombava morto. Ressuscitava, voltava a varrer, levava outro tiro, girava o corpo em corrupio  e se esticava no chão.  Acontece que o Sargento Josias estava à janela que dava para a varanda, mas só via o Zenon, o teto da varanda impedia a visão do abacateiro, por tanto ele não me via. Numa destas brincadeiras o sargento viu o Zenon por a mão no peito e despencar “morto”, o homem desceu correndo para o quintal, desesperado pra acudir o filho “mortalmente ferido”.

Disto eu nunca me esqueci. E durante muito tempo, a família do Sargento se mudara pra São João do Meriti, estado do Rio, fiquei esperando que aparecesse, no cenário da comédia nacional, a figura daquele astro mirim, nosso querido e inesquecível  Zenon.