Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Os Queridos Filhos de Hasbaia"

Em crônica passada falei que nossa Itápolis era uma grande família, habitada por pessoas pacíficas, em geral bem humoradas, que viviam em perfeita harmonia. Não se viam manifestações que revelassem preconceito racial; os negros não se sentiam ofendidos por serem chamados de Dito Preto, Negão da Borracharia, os italianos e seus descendentes não se importavam se alguém os chamasse de polenteiros, de Porca Miséria do Posto de Gasolina, nem os libaneses se melindravam ao serem chamados de turcos, de rabatachos. Tudo era levado numa boa, porque a “maldade social”, verdadeiro preconceito e transtorno obsessivo dos tempos atuais, não encontravam terreno para germinar. Ainda não tínhamos sido vitimados pela mídia despreparada que confunde hoje a mente de nossa sociedade.

Itápolis era habitada grande parte por italianos e libaneses, e estes se entendiam muito bem. Talvez porque a maioria dos italianos provinha do sul da Itália, região que foi dominada pelos mouros durante onze séculos, e mouro é um dos ramos raciais árabes. Tínhamos inúmeras famílias vindas do Líbano, a imensa maioria provinha de Hasbaia, como os Lutaif, os Feres, os Haddad, os Abdelnur, os Atique, os Bucalem, os Chammas, os Batlouni.

Os Chammas eram meus vizinhos, os três irmãos, Assef, Salim e Espiridião, fixaram residência na mesma quadra da Avenida Campos Salles, da esquina  da Rua Bernardino de Campos até o meio do quarteirão, na mesma calçada; ali tinham suas casas comerciais conjugadas com suas residências. A única irmã, Dona Mahiba, era casada com o Sr. Gabriel Feres, cuja família morava numa casa do Sr. Lutaif, na esquina da Av. Francisco Porto com a rua Bernardino de Campos. O Sr. Gabriel e Dona Mahiba tiveram vários filhos. Infelizmente o Sr. Gabriel veio a falecer ainda jovem. Dona Mahiba, quem considero uma heroína,  e seus filhos foram objeto de uma de minhas crônicas passadas. 

O Sr. Assef se abrasileirou de tal forma que era chamado de Zezinho Chammas, aquele homem que passava sempre vestido de terno, chapéu e seu infalível cigarrinho de palha. A casa do Sr. Zezinho era a da esquina, ficava defronte à fábrica de balas e rebuçados, à Casa dos 2 Irmãos, loja de tecidos e armarinhos do Fuad e do Camilo e à casa dos Carelli. A casa era grande, com uma ampla varanda, onde sempre eu via Dona Salua, que alguns chamavam de Célia, e tinha também um enorme quintal, que descia rente à calçada até o meio do quarteirão, fazendo divisa com a casa do Sr. Libório. E este quintal tem histórias. Por causa de um pé de carambolas, frondoso, sempre carregado ou de flores ou de frutas, frutas que pareciam feitas por mãos de fadas, de tão viçosas e luzentes. Davam água na boca de quem passava. E davam também muita correria pra quem ousasse tentar colher uma delas. O Sr. Zezinho morria de ciúmes de sua caramboleira e quando a via ameaçada, tirava o chapéu e descia com tudo. Eu sei disto muito bem porque fui corrido muitas e muitas vezes. Até o dia em que levei pra ele uma cesta de abacates lá de casa. Fui logo dizendo: “Sêo Zezinho, meu pai mandou estes abacates pro senhor, disse que o senhor gosta!” O Sr. Zezinho recolheu os abacates com um sorriso de agradecimento e me surpreendeu  com uma oferta inesquecível : “Vai lá, menino, pode apanhar umas carambolas pra você!” E me devolveu a cesta! Estava selada a nossa paz!

O Sr. Zezinho e Dona Sálua tiveram seis filhos que eu conheci muito bem e com quem tive grande amizade: a Julieta, que se casou com moço de fora e se mudou para sempre, a Sarah, que na verdade se chamava Vitória, que se casou com o Camillo e atravessou a esquina para ir viver na casa da loja de um irmão só, já que o Fuad havia ido residir na capital; o Jorge, esta figura simpática que reside aí na terrinha  e tem um filha que é uma riqueza, a Soraya; depois do Jorge, vinha o Teodósius, que era da minha turma, edição de 1932, fizemos o Tiro de Guerra juntos, estudávamos juntos e circulávamos pelo “footing” também juntos. O João, que vinha em seguida, virou dentista e a Sumaia, uma menina que era uma lindeza era a caçulinha da família.

O Salim, comerciante que um dia se mudou dali, tinha uma penca de filhos. Lembro-me de suas figurinhas espertas que passavam de mãos dadas com os pais para irem à missa. Quando eu trabalhava clandestinamente como professor em São Paulo, cassado político que eu era, tive a ajuda de um diretor do Colégio Claretianos, e este diretor de nome Stalin Chammas era um dos filhos do Sr. Salim, vejam só. Do
Sr. Espiridião Chammas tenho muito pouco a contar, lembro-me que tinha uma loja de armarinhos e morava na casa atrás da loja, defronte à Casa Bucalém; foi-se embora de Itápolis no período da 3ª Guerra Mundial, fim dos anos 30, começo dos 40, época em que muita gente se mudou da cidade, que padecia os efeitos da crise que transformou a Campos Salles, antes tão cheia de vida e esplendor, numa rua comum.

Na mesma época deixaram Itápolis os Batlouni, libaneses que exerceram na nossa antiga terra intensa atividade comercial e agrícola. O Sr. Jorge Batlouni e seus irmãos Chafic, Tufy, Salma e Mary (pronunciavam Ma-rí), vieram também da decantada Hasbaia, no Líbano. Estabeleceram-se na cidade, ali se sedimentaram como famílias de respeito e dinamismo. Mantiveram a grande e movimentada Máquina Batlouni, que beneficiava café e arroz. A Rua Bernardino de Campos vivia coalhada de carros de boi, carroças e caminhões levando e buscando destes frutos da terra naquela máquina instalada onde, mais tarde, funcionou a Agência Volkswagen, dos irmãos Nilton e Nilson Tarallo.

O Sr. Jorge Batlouni, casado com dona Mathilde, ostentava uma grande família: cinco moças e dois rapazes, na época em que os conheci.  Olívia, Lodí, Olga, Ivone, depois do Michel, a Nádia e o caçula José. Esta turminha ótima cresceu e estudou ali, entre nós, no excelente “Valentim Gentil, onde foram alunos dos famosos mestres como Professor Aureliano, professor Aminthas, professor Marão, professor Abelardo, professor Barretos, professora Loreta, minha tia, professora Joanita, e tantos outros. O Sr.  Jorge Batlouni acabou sendo também fazendeiro; não sei se sozinho ou com os irmãos, comprou a fazenda Figueira, ali pelas bandas do rio São Lourenço, indo pela estrada para Ibitinga.

Os Batlouni se mudaram da cidade um pouco antes de minha partida para estudar. Foram em busca de condições de estudos mais avançados para os filhos, como era comum numa época em que as universidades não chegavam  ao Interior, mesmo às grandes cidades, exceção feita a Campinas, Ribeirão Preto e Araraquara.  Partiram, mas ficaram na lembrança de todos nós e principalmente dos patrícios, da grande colônia libanesa de Itápolis. Nos dias atuais um membro descendente dos  Batlouni, vive e exerce a profissão de médico oftalmologista aí  em Itápolis, falo do Dr. Roberto Saad, filho da Mary.

Como o destino tem seus caprichos, minha filha mais velha, a Lília,   cardiologista de destaque, numa de suas participações em congressos de cardiologia em Nova York, acabou fazendo parte de um grupo de mestres da matéria no Brasil, entre os quais se destacava a figura de “um dos melhores cardiologistas do país”, no dizer de minha filha. E quando este mestre viu que minha filha levava o nome Nigro, logo lhe perguntou: “Você é Nigro?” E diante do sim, completou: “Na minha terra havia uma grande família Nigro!” – “De onde o senhor é?”, perguntou a Lília. “Eu sou de Itápolis” respondeu o mestre. Minha filha estava falando simplesmente com o  Doutor Michel Batlouni, conceituado médico cardiologista, um dos principais diretores do excelente Instituto Dante Pazzanesi, complexo clínico-hospitalar especializado em doenças do coração. Este encontro foi a mola que impulsionou o resgate de uma parte do meu passado. Assim que pude fui encontrá-lo naquela grande instituição. E me deparei com uma pessoa que esbanja simpatia, extremamente gentil e afável, que me reenviou às cenas tão comuns daquele tempo feliz, em que minha casa vivia cheia de estudantes que ali moravam, como pensionistas, e que recebiam sempre os colegas, Jorge, Michel, Nádia, Sarinha, Julieta, os “rabatachos” da redondeza, esta gente maravilhosa que Hasbaia nos mandou.

Conversando com o Dr. Michel Batlouni, tive a grande alegria de ouvir dele palavras de saudades da nossa querida terra, saudade da grande colônia libanesa e de muitas famílias com quem privou da amizade e do convívio. E uma coisa muito importante é destacada pelo nosso personagem, quando se refere à nossa terra:  a excelência do ensino que era praticado no nosso glorioso “Valentim Gentil”, excelência esta que, segundo o Dr. Michel, facilitou muito o sucesso dele e de seus irmãos na carreira universitária. Chegaram em São Paulo com tão bom preparo básico, obtidos no Grupo Escolar “Antônio de Morais Barros” e no Ginásio Estadual e Escola Normal “Valentim Gentil, que não foi preciso enfrentar cursinhos, foram logo sendo admitidos nos vestibulares de então.  O Doutor Michel guarda em sua memória as figuras daqueles mestres, um a um. Estas palavras, vindas com entusiasmo, de um filho da terra de enorme sucesso nos meios universitários, ele é professor da Medicina da USP, e das  ciências médicas, nos enchem de orgulho e de muita saudade.