Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Está difícil, pode ser?"

Hoje estou sem assunto, experimento aquela sensação que de vez em quando nos confunde a mente e a gente fica incapacitado de reunir lembranças, estimular a imaginação, alinhavar um texto. Na verdade esta semana está sendo assim pra mim. Já me sentei várias vezes diante do computador, escrevi o cabeçalho e... nenhuma ideia, nenhuma lembrança, nenhuma palavra que despertasse a memória. Fiquei eu a olhar para a tela branca, esperando. Mas, esperando o que? Nem isto eu sabia, nem isto estou sabendo.

Então, como será preciso fechar a edição desta semana, resolvi sentar-me aqui e deixar rolar, como dizem atualmente. Sabem que esta expressão “deixar rolar” é bem simpática? Tem gíria que não pega bem, que não vinga. Ou porque não exprime bem o que se quer dizer, ou porque tem uma sonoridade feia, desagradável ao ouvido, ou porque é grosseira.  “Deixar rolar” diz tudo, quando não se pode controlar os acontecimentos ou as pessoas; tem uma sonoridade agradável, por isto pegou.

Na minha mais tenra Itápolis também tínhamos a nossa gíria, que alguns chamam de jargão. Era bem diferente da de hoje. Dizer como era vai certamente causar risadas nos mais jovens. Mas, vou arriscar. “Deixar rolar!”, por exemplo, era “levar na maciota”. – “Você não sabe se gosta mesmo dele? Leva na maciota!”, está aí um exemplo; maciota é um derivado de macio, quer dizer não pega pesado, pega macio, deixa o tempo correr que as coisas se resolvem.

Vocês já ouviram contar que antigamente o rapaz pedia em namoro dizendo “Pode ser ou está difícil?”.  Pois é, isto é gíria da boa, caracteriza o linguajar de uma época, de um grupo social. Naquele tempo se alguém quisesse dizer “claro que sim”, esta maneira de afirmar com convicção, podia também simplesmente             dizer: “Mas nem!”  Quer ver como era?  “ –Você tá torcendo pro Oeste?  -- Mas nem!”  Esta gíria durou anos, e não era só em Itápolis não, ouvia-se “Mas nem!” em todo nosso Interior. Se o sujeito era “legal” (gíria de agora), diziam Ele é “supimpa!”  Se a pessoa achava que uma certa idéia ia dar errado, ou ia causar estrago, ou ainda se ia causar briga, o que mais se ouvia dizer era “isto vai dar bode!” ou “você vai dar com os burros n’água!”

Se o rapaz ia tirar uma moça pra dançar e ela dava uma desculpa, mesmo que fosse por motivo real, diziam “Chiii, ele levou táboa!”  O moço em questão “levou táboa”,  a moça que se negou a dançar “deu táboa” , entendeu?  Quando o rapaz ou a moça lançava olhares convidativos para o sexo oposto, dizia-se “Fulano está de flerte com Sicrana”. “De flerte com” é expressão que vem do inglês “flirt”. E flirt deu o verbo flertar: “Fulano está flertando com Sicrana”, ou ainda “Ela gosta de flertar com os rapazes”.

Eu usei aí atrás duas palavras que estão desaparecendo do vocabulário cotidiano, “Fulano” e “Sicrano”. Tem uma terceira palavra relacionada com estas, “Beltrano”. Quase não se ouvem mais estas três palavras, tão em uso antigamente. Mas isto não quer dizer que elas façam parte da gíria de uma época. Fulano, Beltrano e Sicrano são vocábulos de nossa língua portuguesa oficial, estão no dicionário. Elas têm origem em antigas línguas, têm vida longa, portanto. As palavras da gíria não estão nos  dicionários  convencionais, podem aparecer em dicionários alternativos (Dicionário da Gíria Brasileira – de Arthur de Menezes, por exemplo).  Isto porque uma gíria pode ser de uso restrito de uma região, pode também durar pouco, sofrer mutações bem mais rápidas que as palavras comuns.  Fulano, Beltrano e Sicrano sempre estiveram nos dicionários e ainda estão. São formas que a língua portuguesa encontrou para substituírem os nomes próprios  de pessoas que são ou foram personagens de um acontecimento que a pessoa está narrando e não quer revelar os nomes. Geralmente estas palavras aparecem no masculino, pois era falta de bons modos usá-los para se referir a uma mulher.

Outra expressão bem na moda naqueles velhos tempos em que vivi em Itápolis era “uma coisa puxa a outra”, que expressava uma idéia leva à outra, uma lembrança traz outra.  Pois é, meus caros leitores, eu que estava sem assunto, que não tinha nada de antigo pra lhes contar, fui escrevendo, escrevendo, uma coisa puxa a outra e acabei flertando de novo com o meu passado. Juro que quando comecei a escrever pensei que ia dar com os burros n’água.  Às vezes está difícil, mas pode ser.