Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Diário de Itápolis - Relações Pessoais e Financeiras

Na minha mais tenra Itápolis a vida era bem tranqüila, a relação entre as pessoas, independente de classes e de situação sócio-econômica, era marcada pela confiança e cortesia, claro que havia exceções, mas eram pouquíssimas e, tanto o não-confiável, quanto o descortês, estes ficavam bem visíveis aos olhos de todos. Não havia supermercados e as transações de compra e venda eram na base do pedido e atendimento. Não havia o pegue e pague. Você chegava na loja, no bar, no armazém, você tinha que pedir ao balconista a mercadoria que foi lá comprar. E ao balconista cumpria atendê-lo. No balcão se negociava preço, garantia do produto, forma de pagamento, entrega, descontos, tudo enfim. Era uma relação direta entre freguês e negociante, como se costumavam chamar os comerciantes, ou empresários, ao novo costume de nossos dias.

As compras a crédito não tinham a forma, os prazos,  o volume nem o controle de órgãos do governo, como passaram a ter mais tarde. Os bancos tinham pouca ou quase nenhuma influência neste tipo de transação comercial. Não havia financeiras, carnês, débito em conta, cartões de crédito, aliás, não existiam cartões para comprar, pagar, sacar, parcelar compras. As transações a crédito nem mencionavam a palavra “crédito” – chamavam-se “comprar e vender fiado”. Fiado, que vem de “fiar” era a forma que se usava para pagar depois. Pagar por mês, parcelar o pagamento. A  palavra “fiado” aparecia em todos os estabelecimentos comerciais, nos salões de barbeiro, nas oficinas, nas alfaiatarias. Em geral afixavam uma placa, um pequeno cartaz anunciando “Não vendemos fiado”, “Não vendo fiado”. Havia uma forte prevenção contra o fiado. E uma tendência discriminatória contra ele. As pessoas comentavam, em cochichos, “aquele ali, ó, compra fiado”.  Não era uma boa credencial para as pessoas.

 Mas se vendia fiado sim. As farmácias, as padarias, os empórios, os armazéns, quase todos tinham seus fregueses de caderneta! A expressão vem daí. O negociante selecionava seus fregueses e a estes até oferecia o uso da caderneta. Era um caderno em tamanho reduzido, desses que se usam hoje para organizar agendas práticas de endereços e telefones. Eram duas cadernetas, uma ficava com o   negociante, outra ficava com o freguês, que a levava consigo quando ia comprar naquele estabelecimento. Era comum se verem nos açougues, nas padarias, nas farmácias, em muitas vendas, lojas, até em bares. O freguês ia fazendo sua compra, tudo passava pelo balconista ou pelo dono da loja, e este ia anotando nas duas cadernetas. No dia aprazado era só você somar em casa as compras do mês, levar pra conferir com a do seu credor, bateu, pagou. Tudo muito simples, sem burocracia, sem o perigo de um passar a perna no outro. Deu pra pagar? , está pago? Abre-se nova caderneta e a vida continua. Não deu pra pagar tudo? Aí entrava a negociação do prazo que, em geral, não passava de quinze dias. Quem só comprava à vista, no dinheiro, não só gozava de alto prestígio no comércio, como lucrava com os descontos.

 A atração dos descontos era já uma grande arma comercial. Contavam até uma piadinha a respeito: uma senhora chegou para o dono de uma loja de tecidos bem conhecida na cidade e perguntou: “O senhor pode me dizer a que horas sai a jardineira para Ibitinga?” – e veja a resposta do gentil comerciante: “A jardineira bra Ibitinga barte às 3 horas, mas, bra senhora, barte as 2 e meia!” – feito o desconto! Não era libanês não!!!

Tempos diferentes dos de hoje! Os cereais, o açúcar, a farinha de trigo, eram vendidos a granel, ficavam expostos em sacos de estopa ou de pano de 60 quilos e eram acondicionados pelo vendedor em sacos de papel. Os armazéns vendiam açúcar mascavo e açúcar cristal, não havia ainda o refinado, que começou a ser comercializado após o término da 2ª Guerra Mundial, em 1945. O café era vendido em grãos, e cru. Era torrado e moído em casa. Quantos torradores, redondos ou cilíndricos, meu pai fabricava sob encomenda!

Tempos em que os chefes de família controlavam com rigor as despesas da casa e dos filhos. Consumismo? Não conhecíamos nem a palavra. Esta praga que leva o homem a cometer loucuras, atos ilícitos, violência e degeneração moral e ética, veio muito depois dessa época! E uma das alavancas desta  prática insensata foi o fim das cadernetas, a instituição do crédito a perder de vista.

Na nossa mais tenra Itápolis, dormia-se melhor, sem medo do amanhã.