Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Diário de Itápolis - Música e Espetáculos

Na minha mais tenra Itápolis não havia ainda a televisão. E no que isto fazia a diferença? Em muita coisa. Sem a TV, que prende você na frente do aparelho,  as pessoas eram mais livres para circular dentro da própria casa e fora dela. A cozinha era, na maioria dos lares, o lugar da reunião da família, se não a cozinha, a copa, a varanda. A sala de visitas era mesmo só para as visitas, a gente não ficava ali, como  fica agora, preso às imagens da telinha.

E o que preenchia o tempo das pessoas nas horas de folga do trabalho? Ah, minha gente, tanta coisa! A calçada defronte à casa era o local mais usado pelas famílias depois do jantar. Ali se sentavam pai, mãe, filhos moços, crianças (geralmente no chão) e os vizinhos que resolviam se aproximar porque a prosa estava boa! As crianças logo corriam brincar com os amiguinhos da vizinhança e só se recolhiam quando os adultos se levantavam para se recolher. O papo corria solto, de vez em quando alguém ia lá dentro  buscar um refresco, uma pipoca, quando não mandavam as crianças  comprar sorvete. Ali saiam piadas, notícias, fofocas, comentários de toda ordem. As pessoas falavam mais, se comunicavam mais.

Jogo de damas e de trilha, brincadeiras das crianças da época

Outra atividade muito comum eram as visitas. Visitas programadas. Havia um rodízio espontâneo de idas e vindas à casa de parentes ou de amigos. Já se esperava que fulano ou sicrano fosse aparecer naquela noite . O bolo já ficava pronto, coberto por um guardanapo branquinho e engomado. O fogo do fogão à lenha não se apagava, prontinho que ficava para a operação “fazer café”. De repente, por volta das 7 da noite, se ouvia: “ô de casa!”. Chegaram! Eram recebidos pelo casal dono da casa. Os filhos iam entrando na sala conforme eram chamados, as crianças ficavam “lá pra dentro”! ali ia ser conversa de gente grande. Se as visitas traziam crianças, estas iam também “lá pra dentro”. Juntavam-se aos da casa e as brincadeiras se multiplicavam. Era “passa-anel”, era “cabra-cega”, era “esconde—esconde”, eram joguinhos de tabuleiro, como dama, dominó, o jogo da velha, que era chamado de “trilha”.

Havia também as pegadinhas. Uma delas era colocar peças de vidro, louça, cristal espalhadas pelo chão,  mostrava-se a cena para a “vítima”, dizendo: “ vamos vendar os seus olhos e você vai ter que atravessar tudo isto sem quebrar nada, se quebrar, paga!” Aí levavam o infeliz para um outro cômodo e enquanto vendavam seus olhos, os demais recolhiam todas as peças do chão, deixando tudo livre, O camarada era guiado até o local e ia andando pé ante pé, e as pessoas o guiavam: “aí não!, mais à direita, mais à esquerda, pra frente” Depois, tiravam a venda e caíam todos na risada!

Lá pelas 8 e meia, no máximo às 9 horas, depois de servido o tradicional cafezinho, as visitas se levantavam, chamavam os filhos que estavam lá dentro, todos se cumprimentavam com um leve toque de mão (naquela época não havia ainda o costume dos beijinhos de chegada e de despedida) e iam saindo, não sem antes perguntarem: “Quando é que vocês vão pagar a visita? Estamos esperando hem!” Pagar visita, expressão que saiu do nosso linguajar cotidiano! E era tão comum naqueles tempos!

Quando não vinham visitas, quando chovia, o jeito era ficarmos todos reunidos, na cozinha ou num dos quartos,  onde se conversava sobre tudo e também se brincava e se faziam pegadinhas.

O mundo sem TV era outro mundo! As pessoas tinham muito mais convívio social, havia mais tempo e disposição para se visitarem os doentes conhecidos ou parentes, havia mais troca de informações e de opiniões! O ser humano era mais integrado com os seus próximos. Isto talvez gerasse mais compreensão e mais tolerância mútuas.

Hoje em dia, não é preciso dizer, isto tudo desapareceu,  as pessoas estão cada vez mais voltadas para o próprio umbigo, num verdadeiro surto de egoísmo que transforma as pessoas numa sociedade enferma, vítima da propaganda que invade os lares e as mentes, criando a famigerada compulsão pelo consumo, pelo ter o que todos têm, pelo ter cada vez mais e mais. Os que têm condições de satisfazer o seu consumismo exacerbado se limitam ao seu mundinho material, os que não têm meios, ou já os esgotaram, só resta partir para os atos ilícitos, para o comportamento corrupto e às vezes criminoso. É uma das causas de tanta violência e tanta indignidade de grande parte do conjunto social, nas suas diversas camadas.

A televisão trouxe a extinção do cinema como aglutinador da sociedade, tirou enorme parcela dos freqüentadores de teatros, casas de shows, circos. E sua contrapartida é cada vez mais pobre e baixo nível. Até os comerciais se empobreceram em qualidade, as novelas se tornaram repetitivas, e a grande atração dos tempos modernos é o vazio “reality show”, que coloca um bando de ilustres desconhecidos numa jaula, expostos à bisbilhotagem de milhares de pessoas despidas de ambição cultural e artística, deixando as salas de visitas de hoje cheias de pessoas vazias.