Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Diário de Itápolis - Dias Santos de Guarda

A minha mais tenra Itápolis guardava  rigorosamente os “dias santos de guarda”. Além dos feriados oficiais, era costume não trabalhar nos tradicionais “dias santos”. Lembro-me bem: ninguém trabalhava no dia 8 de maio, dia da Ascensão de Maria, no dia 15 de agosto, Assunção de Maria, nos dias de Santo Antônio, 13 de junho, de São João, 24 de junho e de São Pedro, no dia 29, eram as festas juninas; dia 8 de dezembro era dia de Nossa Senhora da Conceição.  Entre as pessoas da cidade podia ter um ou outro que não respeitasse aquilo, coisa rara; mas, no sítio, ah não tinha este que não guardasse o DIA SANTO!

Assim como o feriado de 7 de setembro abrangia a semana inteira – dia 1º era o dia dos patriotas, dia 2, o dos guardiões da Pátria, dia 3, o da defesa da Pátria , o dia 4, o das Missões Patriotas, dia 5 era o Dia da Juventude, dia 6, o Dia da Bandeira – dia 7, o grande dia, a festa comemorativa da Independência, o Dia da Pátria, assim também a Semana Santa não se restringia à Sexta, Sábado e Domingo

Cerimônia do Lava-pés, onde Cristo lavou os pés do apóstolos, dando prova de humildade

 santos. Todos os dias da Semana Santa eram guardados, e a partir da 5ª feira, dia da Procissão do Encontro, que se dava bem cedinho, enquanto à  noite se dava a cerimônia do Lava-pés, quando o vigário da Paróquia, representando Jesus, dava uma prova de humildade lavando os pés dos 12 apóstolos, ali representados por homens do povo.  A Sexta feira Santa era marcada por um amplo silêncio que tomava toda a cidade e viam-se homens e mulheres se dirigindo à Matriz, em todas as horas do dia, para acompanharem os atos litúrgicos que referiam a Paixão de Jesus Cristo. Não se comia carne, ninguém ligava o rádio, evitava-se cantar, os sinos não eram tocados, as imagens dos santos permaneciam cobertas de roxo, como ficaram durante toda a Quaresma, formava-se assim um clima de luto e de tristeza que contagiava todas as pessoas. A tristeza e o luto acabavam, naquele tempo, no Sábado da Aleluia!  Às 10 em ponto da manhã os sinos começavam a repicar, os santos eram descobertos dos mantos roxos que os entristeciam, as flores e as luzes ressurgiam de repente: era a Ressurreição de Cristo. Lá fora o povo brindava a vitória de Jesus com fogos, com vivas e com a malhação de Judas. Ninguém chamava aquele momento de Páscoa da Ressurreição, era o Sábado da Aleluia! A Páscoa era no domingo.

Finados, Dia dos Mortos, que está aí, também se comemorava em 2 dias: os dias 1º e 2 de novembro. Dia 1º era o Dia de Todos os Santos – você vai dizer “mas ainda é”, eu sei. Mas era guardado por todos, comércio não abria, oficinas permaneciam fechadas, e era vermelho até na folhinha. O cemitério era muito longe da cidade, ir até lá era uma aventura que unia o povo, as famílias e a criançada adorava! Podia-se ir por dois caminhos: a avenida da Saudade, que naquele tempo não era calçada e não tinha duas pistas e o trilho da Estrada de Ferro, que saía da Estação, passava pelos armazéns do DNC (Departamento Nacional do Café), depois IBC(Instituto Brasileiro do Café) e seguia entre fundos de quintais, chácaras e sítios até se chegar nas proximidades do Cemitério. Nos dois dias do evento a rua e os trilhos da Douradense viravam um formigueiro de gente. Apesar de serem dedicados aos mortos, aqueles dias tinha um ar de festa popular.

Nos quarteirões próximos ao Cemitério, as barracas coloridas vendiam guloseimas, refrescos, pipoca, amendoim torradinho, biscoitos de polvilho e as infalíveis frutas da estação: as melancias! Era a Festa da Melancia, como parece que acontece até hoje. E aí tem um particular pra contar pra vocês. Meu pai não gostava de comprar guloseimas nem refrescos, dizia sempre “Lá em casa sua mãe faz!” – E eu via aqueles garrafões enormes, transparentes cheios de um refresco vermelho que parecia a bebida dos deuses. Era o famoso “capilé”, mistura de groselha, água e açúcar. Aquilo me deixava com água na boca, pois minha mãe não fazia capilé; fazia limonada, laranjada, suco de caju, mas capilé, ah, não fazia não. E ainda por cima o bandido era vermelho, o que dava mais vontade. Eu pedia, meu pai fazia que não ouvia e me puxava com mais força pela mão. Eu ia sendo arrastado pelo caminho, olhando pra trás, praqueles garrafões que guardavam a minha líquida paixão, até a vista não mais alcançar.

Já moço, em São Paulo, na pensão de estudantes da Rua Maria Antonia, 358, estava chegando o dia  de eu receber meu primeiro salário pra valer e a ansiedade aumentando. Chegou o dia, recebi o sacrossanto; cheguei na pensão, procurei a cozinheira, a dona Patrocínia, uma santa que cuidava de todos nós, 30 rapazes, 8 só de Itápolis, e fiz um pedido: “A senhora lava bem este balde que eu acabei de comprar, deixa eu encher com água gelada!” Ela me atendeu, curiosa (“o que será que este menino vai fazer?!”) Eu coloquei aquele balde em cima da mesa tosca da cozinha, abri 2 litros de groselha que trouxera do armazém, virei os dois até  esvaziarem seu líquido vermelho naquele balde cheio de cubos de gelo, mexi com a colher de pau e mergulhei a boca naquela delicia cobiçada desde a minha meninice! Não vou dizer que bebi tudo, porque não agüentei. Mas cumpri uma promessa que vinha fazendo no meu inconsciente e matei a vontade de tomar aquela ambrosía dos Finados da minha mais tenra Itápolis.