Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Diário de Itápolis - Famílias e Ruas

O candeeiro caminhava sempre à frente dos bois; tinha esse nome porque à noite, ele levava a candeia para iluminar o caminho

Na minha mais tenra Itápolis não havia televisão, nem CD, nem DVD, nem MP3, MP4, era um mundo em que a tecnologia caminhava a passos lentos. E este ritmo sossegado se refletia em tudo. O transporte mais comum era por tração animal: o velho carro de boi com suas rodas enormes, geralmente feitas em madeira, sem raios, fechadas, e o atrito do eixo com essa madeira produzia um som que ecoava pelas ruas como que anunciando: “aqui vamos nós!” E lá vinha a junta de bois, às vezes formada por seis animais, outras por quatro, raramente por dois. Na frente caminhava o jovem candeeiro, guia que levava este nome porque nos carretos e nas comitivas noturnos, o guia da tropa levava a candeia que alumiava o caminho.  Ao lado do carro caminhava atento, empunhando seu varão, aquele que hoje virou lenda e tema de modas de viola:  o carreiro!  Aquele homem vestido rusticamente dominava com maestria aqueles animais presos às cangas atreladas ao carro, usando a voz, os grunhidos, os aboios mais diversos. Os bois tinham nomes que o carreiro usava pra corrigir a postura, o passo, a direção daqueles animais. Os nomes mais comuns que se ouviam eram “Soberano”, “Pernambuco”, “Sereno”, “Malhado”, que atendiam às ordens do “patrão” antes que este usasse o ferrão nos seus flancos.

Os lendários carros de boi foram substituídos pelas carroças puxadas por burros, transporte até hoje usado em várias cidades do interior

Na minha infância vi muitos carros de boi, que por muitos anos transportavam café em coco para o terreiro de secagem que ficava ao lado do depósito de café já beneficiado, pertencente ao Sr. Carlos Vessoni, vizinho da direita. Estes lendários carros foram mais tarde substituídos pelas carroças puxadas por burros, transporte que até hoje se vê em uso em várias cidades do nosso interior. A digna profissão de carroceiro era praticada por cidadãos que mereciam destaque na sociedade itapolitana. Aliás, como os carroceiros, os ferreiros, os encanadores, os pedreiros, os pintores de parede, os mecânicos, os seleiros, profissionais na maioria artesanais, eram muito bem considerados na cidade. Nós, filhos deles tínhamos orgulho de dizer: “meu pai é encanador!, meu pai é carroceiro!, meu pai é pedreiro!” e daí por diante. Lembro-me bem que meu pai reunia sempre os amigos para jogar jogos de cartas que chamavam de “patrão e sotto”, “3...7”, não sei o porque desses nomes e nunca consegui entender como se jogavam. Na cozinha da minha casa, aquela mesa enorme reunia o Sr. Vitório Castelli, mecânico, Sr. Chico Torres e Ernesto Branco, carroceiros, Sr. Reynaldo Guandalini, folheiro e calheiro, Sr. Pedro Fazio, encanador como meu pai, e o único que escapava à categoria de trabalhadores, era o infalível Sr. Antônio Compagno, fazendeiro.

Este tipo de criação, o convívio com homens que marcavam sua atuação na cidade pelo trabalho, muitas vezes pesado, deu a nós, seus filhos, a capacidade de valorizar os trabalhadores braçais.

Padaria e Confeitaria Santarelli, na esquina da Barão do Rio Branco com Francisco Porto, hoje(2009) Lotérica Cidade das Pedras, de onde se vinha com pacotão de sequilhos, brevidades e outras delícias que só a Dª Maria sabia fazer

Na falta da TV, dos sofisticados aparelhos de hoje, sobrava tempo para um intenso convívio social. As famílias se visitavam. Eram visitas com dia e hora marcados, e ia a família toda. Os adultos ficavam na sala, as crianças e os jovens iam para os fundos da casa. Naquele tempo criança não participava de conversas de gente grande. A visita ia embora, mas ao sair avisava: “vocês vão pagar esta visita, é só avisar!” Pagar visita! Há quanto tempo não ouço esta expressão! Costume de um tempo em que, nas noites de calor as famílias sentavam-se nas calçadas, logo os vizinhos se juntavam e o papo fluía solto, alguém ia comprar sorvete na sorveteria do Sr. Miranda, ali na Campos Salles, ou então subia até a padaria do Santarelli, de onde voltava com um pacotão de sequilhos, brevidades, suspiros, roscas de nata e  bolachas de amoníaco, delícias que só a Dona Maria colocava ao alcance dos fregueses.

A vida seguia no seu ritmo arrastado, as mudanças demoravam a acontecer, as modas e os modismos duravam “séculos”, as amizades pareciam eternas, tudo combinando com o canto arrastado dos velhos carros de bois, transporte da nossa tranqüilidade, duto de nossa segurança nunca ameaçada.