Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Diário de Itápolis II

Minha mais tenra Itápolis era coberta por um manto de intensa religiosidade. A Igreja Matriz, única igreja católica naqueles anos, reinava absoluta na subida da colina. Pra quem, como eu, vivia nos baixos da Francisco Porto, a visão da Matriz era portentosa!. O povo cultuava as figuras dos já falecidos padre Tarallo e Cônego Borges. Orgulhávamo-nos do lindo altar-mor, todo de madeira entalhada, que os mais velhos contavam ter sido esculpido a canivete. Tão belo e singular era aquele monumento à fé, que o bispo de São Carlos, Dom Vitor, o andara cobiçando, revelando intenção de confiscá-lo para a sede da Diocese. A cidade preparava-se para resistir, quando veio a notícia que o bispo desistira do intento. Os outros altares, também em madeira, não ficavam atrás do altar-mor. E Jesus Crucificado, em tamanho natural, cruz de madeira tosca, era um dos meus encantamentos. Já menino, quando passava pela Matriz, não resistia à vontade de nela entrar. E ficava longo tempo contemplando aquela cruz e aquela imagem de sofrimento e martírio que me impressionaram sempre! Talvez seja por isto que tenho grande capacidade de suportar as dores e os sofrimentos desta vida, pois sempre acho que não é nada, perto do martírio de Jesus Cristo, meu eterno ídolo.

Foto de uma procissão da época

1-? Maruyama, 2-Aldo Bonazzi, 3-? Dultra, 4-? Calça, 5-Anésio dos Santos, 6--Frei Paulo Luig, 7-Frei Agnelo, 8-Tarquínio Bellentani, 9-Frei Nereu, , 10-Toninho Butarello, 11-Luís Gardelin, 12-Waldir Butarello

A Semana Santa da Itápolis daqueles tempos era um período memorável. Precedida da longa Quaresma, coberta de roxo, quando não se comia carne de jeito nenhum, assim como não havia bailes e outros eventos festivos, a Semana Santa se revestia de uma atmosfera de luto e dor. A gente vivia então como que transportados para Jerusalém. Pra mim e pros meus amiguinhos de infância, aquele Cristo morto era real e  a procissão do enterro, na Sexta Feira Santa  era acontecimento extremamente triste. Lembro-me como se fosse hoje!

 As famílias que habitavam as ruas por onde ia passar o cortejo fúnebre, montavam altares em suas janelas. Altares cada um mais lindo que o outro, onde apareciam as toalhas de linho bordadas, os castiçais de prata ou de cristal e as flores de cores discretas  O cortejo se estendia por quase toda a cidade, com as mulheres em roupas escuras, cobertas por longos véus, que as transformavam em “mater dolorosas”. Todos os participantes, homens, mulheres, crianças, tinham na mão uma vela acesa e a visão que se tinha era aquele fogo serpenteando pelas ruas. Como a procissão não passava pela Francisco Porto, nós íamos assisti-la na frente da casa do Nono, que era na esquina da antiga XV de Novembro (hoje Valentim Gentil, com a Bernardino de Campos). E o altar que a Nona montava era pra nós, seus netos o mais bonito da cidade. Momentos inesquecíveis, matizados de fé e da magia da procissão das velas!

E a procissão acabava levando todo o povo pra dentro da igreja matriz, onde se fazia uma vigília silenciosa, velando o Corpo de Jesus. E a gente, criança, já se preparava pra grande alegria da Aleluia, que, naqueles tempos, acontecia no sábado, Sábado de Aleluia, às 10 da manhã. Os sinos da Matriz badalavam alegres por longo tempo! Dentro da igreja o roxo que cobria as imagens era substituído pelas cores vivas e pela intensa luminosidade. Lá fora, o Judas era malhado sem piedade! Era o fim do luto da Quaresma, era a alegria imensa pela Ressurreição de Cristo  que inundava a alma dos fiéis.

Igreja da Congregação Cristã do Brasil, construída na Av. Cap. Venâncio de Oliveira Machado, esquina com a Rua 13 de Maio, hoje Ricieri Antonio Vessoni
Igreja Presbiteriana, construída na Av. 7 de Setembro, ao lado do Grupo Escolar, hoje EE Prof. Júlio A. Mallet

Itápolis tinha, na época, a Igreja Presbiteriana que funcionou um tempo num prédio pertencente ao Sr. Lutaif, na esquina da Bernardino de Campos com a Francisco Porto. Depois se transferiu em definitivo para o templo novo, construído ao lado esquerdo do Grupo Escolar, na Avenida 7 de Setembro, onde está até hoje. Havia também um templo de evangélicos, Congregação Cristã do Brasil, lá nos altos da rua 13 de maio, hoje rua Ricieri Antônio Vessoni, onde funciona até hoje. Havia também os espíritas, que se reuniam em mesa branca na casa do Sr. Antônio Rosa, no fim da Avenida Francisco Porto. Havia uma coexistência pacífica, de mútuo respeito, entre todas estas religiões,

A nossa Matriz não tinha o prédio do Convento na sua traseira. Era toda rodeada de jardins. Até que chegaram os frades franciscanos, comandados pelo querido Frei Elias. Com eles se construiu o Convento e o salão que foi teatro, salão de festas e o Cine Ideal. Como a gasolina estava racionada, por causa da 2ª Guerra, os carros passaram a usar o gasogênio, um aparelho que era um verdadeiro trambolho, atrelado à traseira dos carros. Pois não é que os engraçadinhos de plantão resolveram apelidar o Convento de “Gasogênio da Matriz!

Nesta época de minha vida de menino, pra alegria da dona Bebé, minha mãe, ganhei o posto de coroinha. E quem me ensinou como ajudar a missa, foi do Chiquinho Santarelli, coroinha já veterano. E não me esqueço de quando, ajudando o Frei Elias numa missa de domingo, ao subir os degraus do altar-mor, pisei na barra da batina e rolei até o primeiro banco, repleto de velhinhas da Irmandade do Coração de Jesus. E pude perceber, mesmo todo dolorido, que elas não conseguiam esconder o riso! E para minha tristeza, ainda levei uns bons beliscões do padre.