Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Corpo e Alma de uma Gente"

Era tão quente quanto agora a nossa Itápolis dos velhos tempos, talvez até mais quente, pois me lembro de quando, olhando ao longe, nossa vista se turvava levemente com o vapor que saía da terra. Terra que soltava poeira, poeira que fazia parte de nossa paisagem, que tornava o céu  avermelhado do lado donde se anunciava o temporal que nos ameaçava. Poeira que era levantada pelo vento da ventania que anunciava a chuva brava. Poeira que avermelhava o céu se subia das estradas, que amarelava o ar se subia das pedreiras da pedra-de-fogo, nosso solo e sub-solo, nosso nome de batismo.

Nada impedia que os estudantes usassem suas fardas cáquis e suas saias e blusas que lhes cobriam e escondiam as formas

Era tão quente quanto agora a nossa Itápolis dos velhos tempos, talvez até mais quente, pois me lembro de quando, olhando ao longe, nossa vista se turvava levemente com o vapor que saía da terra. Terra que soltava poeira, poeira que fazia parte de nossa paisagem, que tornava o céu  avermelhado do lado donde se anunciava o temporal que nos ameaçava. Poeira que era levantada pelo vento da ventania que anunciava a chuva brava. Poeira que avermelhava o céu se subia das estradas, que amarelava o ar se subia das pedreiras da pedra-de-fogo, nosso solo e sub-solo, nosso nome de batismo. Éramos perfeitamente adaptados ao calor forte e ao poeirão, tanto que nem o pó que avermelhava nossos colarinhos, nem o calor que molhava as costas de nossas camisas, nada disto impedia que vestíssemos terno para irmos à missa, nem que as mulheres vestissem suas roupas fechadas, garantia de seu recato, e nem que os estudantes usassem suas fardas cáquis e suas saias e blusas que lhes cobriam e escondiam as formas.

Era outra a paisagem física da cidade, com suas ruas poeirentas ou barrentas, conforme o clima, era outra também a paisagem humana, com toda gente vestida de modo recatado, fossem os ternos dos funcionários públicos, dos advogados, dos cartorários, dos bancários, fossem os uniformes dos operários, dos motoristas de praça, dos guardas noturnos, fossem os hábitos fechados das irmãs de caridade, as batinas dos frades e dos padres, a manga de camisa dos transeuntes comuns. Não se viam bermudas, bermudões, shorts, a não ser em raros eventos esportivos.

A roupa que nos vestia nem sempre revelava nossa condição social. O pobre também se vestia com trajes completos, conforme a ocasião. As roupas de então estavam ao alcance de todos, pois eram feitas  por alfaiates e costureiras para quem podia pagar, e pela dona de casa, aquela mãe prestimosa, aquela irmã mais velha que todas sabiam costurar. Não havia lojas de confecções, não havia butiques, havia sim lojas de matéria prima para se fazerem as roupas, as lojas de tecidos, as lojas de armarinhos. A máquina de costura era coisa tão familiar que havia lojas e representantes das diversas marcas que vinham morar na cidade para promover a venda delas. A gente chamava esses profissionais de “gerentes” O “gerente” da Sínger, o “gerente” da Pfaff, o “gerente” da Vigorelli, o  “gerente” da Elgin. Era raríssima a casa onde você entrava, que não ostentasse a sua máquina de costura.

Vigorelli, Singer e Pfaff, as 3 marcas de máquina de costura mais famosas e vendidas, na época

As roupas das crianças eram bem ao estilo da infância, com seus pompons, seus laços e lacinhos, suas formas balonês, suas cores vivas; já na idade escolar as roupinhas ficavam mais sóbrias na forma e nas cores e a calça curta acompanhava os meninos até os treze, catorze anos de idade. Os vestidos e as saias das meninas cobriam suas pernas até metade das canelas e era raro que se lhes vissem os joelhos.

Os acessórios também eram típicos daqueles tempos. Desde mocinhos, quando passavam a usar calças compridas, os homens aderiam ao uso do chapéu, alguns imigrantes, quando europeus, exibiam os bonés munidos de pequena aba dianteira, geralmente xadrezes, na tonalidade cinza ou marrom. A gente sabia que nas capitais as mulheres costumavam ostentar lindos chapéus, mas isto raramente sucedia nas cidades interioranas e Itápolis não fugia à regra. O que havia era uma profusão de sombrinhas feitas de tecidos nobres, como linho, morim, setim, lese, cambraia; algumas exibiam apliques de flores ou pequenas figuras temáticas, sempre muito delicadas, que embelezavam suas portadoras. Os homens exibiam seus guarda-chuvas com cabos variados, alguns de prata, outros de madrepérola, de madeira torneada. Além de sua utilidade prática, sombrinhas e guarda-chuvas serviam de adereços, eram complementos do vestuário, davam um ar de elegância a quem sabia usá-los.

Falo aqui de uma época que ainda não conhecia a calamidade do plástico, o sabor insosso dos “fast-foods”, o comer de pé, o vício dos refrigerantes,  a praga dos pardais, este bichinho feio, sem trinado, que só voa raso e que destrói plantações, porque anda em bando. Época em que o asfalto não impermeabilizava a terra, em que remédio era pra curar doenças e não para deixar “doidão”, em que arma de fogo era assunto de policial ou de soldado.

Era outra a paisagem humana, porque eram outros os costumes dos homens e das mulheres. As roupas e acessórios vestiam e adornavam seres avessos à violência, que enfrentavam as vicissitudes de cara limpa e lúcida, que não buscavam se afirmar pela ostentação, pela opulência. Roupa sóbria em gente pacífica, adereços esculpidos para almas brandas.