Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

Chuvas!

            Hoje acordei com o barulho daquela chuva que parece cachoeira, era água que Deus mandava e uma imagem me veio à mente, a cena que sempre me vem quando chove assim. É a lembrança das chuvas torrenciais que me acordavam na infância. Como chovia em Itápolis! Chovia no inverno, chovia no verão, era no outono, era na primavera, como chovia. Chovia tanto que a gente acabava ficando entendido em previsão do tempo. Olhava pro céu, via nuvens mais escuras de um lado, sabia que vinha chuva fraca, manga de chuva; se as nuvens se juntavam de outro lado, sabia que nem ia chover; e tinha um lado que não falhava, mandava era chuva forte, quando não a tempestade!

            Como eu tinha medo de temporal, pânico de relâmpagos e descargas elétricas, eu logo olhava pro lado do perigo. Era pro lado da mata virgem que cobria boa parte da fazenda do Sr. Ciniro Massari, ali pelos lados de Borborema. Das janelas de minha casa, na Francisco Porto, dava pra ver a casa dos Massari, a colônia de casas brancas dos lavradores, o belo bambual que dava o tom da sede da fazenda. E se as nuvens estavam vindo de lá, era caso de se prevenir porque vinha mesmo, e vinha forte, nem sempre com temporal, quase nunca chuva de vento. Mas era chuva pra lavar a cidade.

            Do lado de Ibitinga, como do de Tapinas era difícil vir chuva, e quando vinha raramente era forte, mesmo que relampejasse bastante, não me lembro de tempestade vinda de um destes lados. Do lado de Araraquara, pendendo pra Taquaritinga era difícil vir chuva, mas quando vinha... ai meu Deus, acendíamos velas pra Santa Bárbara, que lá vinha chuva de vento, chuva rasteira e venenosa e raio pra dar e vender. Era preferível a chuva que vinha do Massari, como se dizia. Por este meu relato você vê que a chuva, aquela que lava, ou aquela que penetra a terra, estas vinham do lado de Borborema. As estradas por aquelas bandas viravam um atoleiro, o motorista tinha que ser perito no volante pra não encalhar. A subida da Onça, na estrada de Borborema, era a mais temida, no sentido de quem vem pra Itápolis. Ficava bem depois da curva que a estrada fazia passando pela fazenda do Sr. Antônio Compagno (leia-se Companho). A parte do Ribeirão dos Porcos que mais dava peixe, na época, segundo os pescadores de plantão, era a que corria logo depois da represa da Usina e o barranco mais promissor era o de onde subia um dos mais lindos pés de ipê que já vi nesta vida. Então os pescadores de Itápolis tinham, em tempos de chuva, que enfrentar, na volta pra casa, a “subida da Onça”!

            Embora chovesse muito naquela época, tempo em que havia muito mais verde, grandes matas virgens circundando a cidade, nunca se soube de qualquer transbordamento de nossas represas, de nossos riachos e ribeirões. Inundação então, só nos filmes de outros países, pois na maior parte do Brasil, isto era fenômeno relatado nos livros. Isto porquê havia terra pra sugar a água da chuva. Terra nos campos, nas estradas, nas praças, nas ruas, nos jardins das casas e nos quintais. Com a explosão da indústria automobilística, que deu aos brasileiros a possibilidade crescente de ter seu carro, veio com ela a supervalorização do carro. O carro dava “status”, ainda dá, embora menos, e as pessoas foram como que enfeitiçadas pela novidade... e os canteiros que embelezavam as entradas das casas foram sendo destruídos, cobertos por acimentados, onde passava a reinar o automóvel da família! Iam comprar um carro pro filho?, mais cimento sobre a terra. As ruas trocaram as vestes de paralelepípedos por uma roupagem negra e compacta que as cobriu até às porteiras das chácaras, depois cobriram com o asfalto as estradas, os quintais passaram a ser objeto de ampliação das moradias, e lá se foram os grandes quintais por onde a chuva penetrava.

            O homem inventa tanta novidade, celulares que servem até pra fritar ovos, mas não inventou ainda um piso que permita a infiltração da água, como ainda não inventou o helicóptero silencioso, a britadeira sem este ruído insuportável, a propaganda sem o berro! E nem  o carro dobrável, que se pode guardar no armário.

            O tilintar da chuva faz tempo parou, olho da janela e vejo a nossa esquina todinha alagada, os passantes arregaçando as vestes, os carros tateando o leito asfaltado. Aí é que bateu aquela saudade da minha mais tenra Itápolis.