Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Vancê sabia disto?"

Na minha mais tenra Itápolis a vida no campo era muito diferente da de hoje; para começar é preciso lembrar que a população rural era muito grande e significativa. Nas chácaras, nos sítios, nas fazendas moravam grande número de proprietários, também de empregados, fossem retireiros, vaqueiros, lavradores, administradores, todos tinham suas casas no seu local de trabalho. Até mesmo as professoras das escolas isoladas, dependendo da distância até a cidade, moravam por ali mesmo, indo para a casa somente nos fins de semana, algumas só de quinze em quinze dias. Nas fazendas de café, a maioria naquele tempo, havia as colônias, que eram casas geminadas, também chamadas de parede-e-meio, construídas de forma enfileirada, que abrigavam os colonos, categoria de lavradores muito importantes no meio rural. Geralmente havia, perto de cada fazenda, uma venda de estrada que atendia aquela clientela, fornecendo os alimentos que não havia na fazenda, assim como outros produtos, armarinhos, por exemplo, utensílios domésticos, ferramentas, alguns remédios comuns. Comentava-se, a boca pequena, que as vendas na maioria pertenciam aos donos das fazendas que serviam, só que estes não apareciam.

Como naquela época as estradas eram de terra, cheias de subidas, descidas e curvas, nem sempre transitáveis, não eram muito usuais as vindas para a cidade. O fazendeiro mesmo vinha pouco, só mesmo em ocasiões especiais, como casamento de parentes, festas e eventos religiosos; os colonos e demais empregados então vinham muito raramente “na vila”. Isto tinha como resultado um certo isolamento do pessoal do campo, formava-se uma espécie de fronteira cidade-campo. Isto tinha como consequência vários aspectos de diferenciamento entre o morador da cidade e o morador do campo. Era diferença na linguagem, na cadência da fala, nos vestuários, nas comidas, no gosto musical, em quase tudo. O homem do sítio, que na cidade era chamado de matuto, de caboclo, de caipira, de jacu, era conservador em tudo, vivia à moda antiga e resistia às mudanças. Na cidade você percebia logo que aquele homem, aquela mulher, aquele grupo de pessoas andando juntos, eram do sítio! O jeito de andar, os modelos e os tecidos das roupas, o jeitão de falar  logo os caracterizavam. Também não podiam ser diferentes, viviam longe das notícias, das novidades, das novas modas, das gírias. Não tinham nada que os ligasse ao mundo fora do campo. Não havia o recurso da eletricidade, da água encanada, das idas e vindas dos viajantes. Dormiam bem cedo, pois a iluminação era com lamparinas, candeias, quando muito, com lampiões. Com isto acordavam ao alvorecer. As refeições eram bem mais cedo do que as do costume da cidade. Por estas razões o homem do campo estranhava demais os modos dos “da cidade”.

Alguns exemplos que mostram bem as diferenças: certas palavras que eram do vocabulário do sítio! “O moça, como você esmagreceu! – Nossa, como o senhor engordeceu! – Eu vim na cidade pra ir na farmácia comprar um fortalecente pra Mariquinha, ela imagrou dum tanto que só veno!  Para o nosso caboclo do sítio chicote também podia ser rebenque, estrada era a linha, vila era patrimônio, povoado, córrego era corgo, febre alta era febre terçã, pneumonia era pelamonia, nuca era cangote, fósforo era forfi, fruta era fruita e assim poderia eu encher este espaço de exemplos do linguajar do campo.

Baile à luz do lampião. Que saudade!!!

Era o tempo das festas de terreiro, dos paliçados, bailes que rolavam sob a proteção de paliças, uma espécie de estacas que sustentavam um amplo coberto de sapé ou de outra vegetação similar, como a tabôa, até mesmo a folha de bananeira; era tempo dos mastros que se erguiam em homenagem a Santo Antonio, a São João, a  São Pedro nos festejos juninos ou nos terços concorridos que faziam. Era o tempo dos casamentos dos fugidos, quando para evitar os gastos enormes das festas de casamento, pais e noivos, em comum acordo, combinavam a fuga dos pombinhos, que logo eram encontrados e o casório se dava na vila, ou na cidade, com os padrinhos como únicos convidados e com a comemoração numa padaria. Como o Cartório do Registro Civil era na descida da XV de Novembro (Valentim Gentil), a padaria que mais abrigava este tipo de casório, era a do Samuel Garnier.

Os tempos mudaram, o café entrou em decadência na economia nacional, a mecanização da lavoura, o asfalto, a iluminação rural, tudo isto colaborou para que se extinguissem as colônias e com elas os colonos que foram alijados de suas moradias e migraram para a periferia das cidades,  virando os bóias frias, que pra trabalhar se sujeitavam aos perigosos caminhões a ceu aberto. Isto alterou a estrutura das pequenas e médias cidades, que conheceram o processo da ruralização de seus costumes, de seu gosto musical, de sua população.