Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"...a cabrocha, o luar e o violão"

Carmem Miranda

Eu costumo dizer que na minha mais tenra Itápolis o ritmo da vida era lento e contido, as horas passavam bem mais devagar, consequentemente os dias, os meses, os anos também.  Mas isto não era um fenômeno somente local, era a cadência de uma época. Um exemplo disso era a quase perenidade dos ídolos de nossa música popular, de nosso teatro, de nosso cinema. Cantores que foram ídolos de nossos pais, continuavam tão vivos e badalados por várias gerações. Seus sucessos duraram uma eternidade, se comparados aos sucessos meteóricos dos tempos atuais. Nossas serestas eram compostas de melodias que já tinham muitos anos de sucesso, algumas até embalaram os sonhos românticos de nossos avós e a gente ainda cantava coisas de Gastão Formenti (1894-1974), de Chiquinha Gonzaga (1894-1935), Carmen Miranda (1909-1955), do célebre Noel Rosa (1910-1937), do romântico Alcides Geraldi (1918-1978).

Emilinha Borba Marlene Dalva de Oliveira

Linda Batista

Os sucessos mais duradouros foram os do famoso trio formado por Sílvio Caldas (1908-1998), o Caboclinho Querido, Orlando Silva (1915-1978), o Cantor das Multidões e Carlos Galhardo (1913-1985), o Rei da Valsa, a Voz de Veludo, trio esse que começou a ter sucesso nos primórdios dos anos 30 e ainda reuniam enormes plateias nos anos 70. Naquele tempo as vozes masculinas eram predominantes no rádio, nos serviços de alto-falantes, nos discos. Algumas vozes femininas passaram a frequentar as ondas do rádio, com o advento da famosa Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que através de programas como o de César de Alencar, passou a difundir as cantoras de maior sucesso, como Linda Batista (1919-1988), sua irmã Dircinha Batista (1922-1999), Dalva de Oliveira (1917-1972), Nora Ney (1922-2003), Emilinha Borba (1923-2005), Marlene (1924); todas alcançaram enorme êxito, mas ainda incomparável com o sucessos dos cantores homens. Na época, principalmente dos meados dos anos 30 até meados dos 40, cantores de tangos argentinos também conquistavam enorme público no nosso país e seus tangos eram obrigatórios nos programas de rádio, nas discotecas domésticas. Carlos Gardel (1890-1935) fazia trepidar os corações com “Mi Buenos Ayres querido”, “La Madreselva”, “Adiós Muchachos”, “Por uma Cabeza”; Hugo del Carril (1912-1989), com “La Cumparsita”, “Esta noche me emborracho”, “Uno”; Libertad Lamarque (1908-2000) encantava a todos com “Cantando”, “Caminito”, “Fumando espero”, “El alma del bandoneón”.

Mas as nossas serestas, nas madrugadas dos sábados e das grandes vésperas, não dava vez para a música estrangeira, mesmo que estivessem nas paradas. Ainda nos anos 50, o que as meninas-moças, as mocinhas, as noivas e as esposas ouviam, sem abrir as janelas, eram “A última estrofe” (1935), “Mágoas de Caboclo” (1936), “Carinhoso” (1937), sucessos do Orlando Silva, que também frequentava as ondas do rádio com “A Jardineira” (carnaval de 1939) e “Nada além”, “Sertaneja”, “Súplica”, “Rosa”, “Aos pés da Santa Cruz”, “Juramento falso”.

Carlos Galhardo

Orlando Silva

Sílvio Caldas

Outro grande cantor que atravessou décadas fazendo grande sucesso, Sílvio Caldas, emocionava nas serestas com o famoso “Chão de Estrelas” (1937), “Boneca” (1934), a preferida da namoradinha do nosso seresteiro Wilson Marin, “Da cor do pecado” (1939), “A Deusa da Minha Rua”, do mesmo ano, “Tres lágrimas”, verdadeiro poema composto em 1933. Sílvio Caldas, o Caboclinho querido, teve sucessos memoráveis, alguns persistem em nossos “fins de noite”, como“As Pastorinhas”, “Morena boca de ouro”, “Maringá”, “Na Baixa do Sapateiro”, “Velho Realejo”, “Arranha-ceu”.

Carlos Galhardo, filho de italianos, nascido na Argentina, mas como dizia, naturalizado paulista, era o encanto das mamães, das vovós, não porque fosse mais velho, ao contrário, mas porque cantava temas que as tocava fundo. “Bodas de Prata”, “Valsa do Adeus”, “Cerejeiras do Japão”, “Tempos de Criança”, “Mamãezinha querida”, “Natal”, além das canções românticas que também enriqueciam nossas serestas, como “Devolve”, “Fascinação”, “Branca”, “O destino desfolhou”, “Linda Borboleta”, “Gira, gira”, “Rapaziada do Brás”, “Salão Grená” e o grande sucesso “A pequena Cruz do teu Rosário”, fizeram dele o Rei da Valsa.

Outra coisa que importa lembrar aqui, é que ainda não tínhamos as imagens de nossos ídolos, para sabê-las era necessário esperar que aparecessem na cidade ou ali por perto, para vê-los num palco improvisado de cinema, ou pelas fotos das revistas e dos jornais. Por essa razão, a qualidade da voz e da interpretação pesavam muito na avaliação dos fãs.

As melodias eram bem cuidadas e as letras eram muito bem elaboradas, ricas em imagens poéticas. Se não imaginam, interpretem a riqueza de imagens deste trecho do famoso sucesso de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa:

A porta do barraco era sem trinco

E a lua furando nosso zinco

Salpicava de estrelas nosso chão.

Tu pisavas os astros, distraída,

Sem saber que a ventura desta vida

É a cabrocha, o luar e o violão”  -  (“Chão de Estrelas”)